Uma ferida aberta

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O filme “Todos os Mortos”, com roteiro assinado e dirigido por Caetano Gotardo e Marco Dutra, se passa em uma São Paulo em 1899, onze anos após a abolição da escravatura, quando “fantasmas da tirania ainda caminhavam entre os vivos”. As mulheres da família Soares, uma idosa ex-baronesa e suas duas filhas, entre elas uma freira, são as antigas proprietárias de terra da aristocracia paulista que, mesmo diante da ruína de seu império da produção de café, não abrem mão do que resta de seus privilégios.

A mais velha, uma freira autoritária, representa o poder da Igreja Católica sob seu reduzido olhar a partir da religião cristã, inclusive, por sua obstinada perseguição aos cultos africanos. A outra, uma personagem que poderíamos pensar como a mais legítima representante da elite brasileira tanto da época quanto da atual, convive a todo momento com os fantasmas dos escravos da fazenda de sua família, alimentando o desejo de voltar aos velhos tempos.

Por outro lado, Iná Nascimento, mulher que viveu por muito tempo escravizada, batalha para reunir seus familiares em um mundo ainda muito hostil, onde os negros recém-libertados não têm o seu lugar reconhecido. Trata-se de uma trama muito interessante e instigante, considerando o papel das mulheres nesse contexto entre senhores e escravizados, na medida em que cada uma dessas mulheres tenta construir um futuro próprio à sua maneira, para si mesmas e aos seus mais próximos.

Se uma abordagem humanista sobre a escravização no Brasil já se nos parece importante para entendermos um pouco de nosso país em seus processos de colonização, mais relevante ainda é termos a oportunidade de uma avaliação crítica sobre o momento pós-abolição que, de alguma maneira, demonstra que esse projeto de sociedade apenas dissimula e escamoteia a ideologia hegemônica e escravista a serviço da classe dominante.

Obviamente, o filme extrapola essa contextualização no tempo e no espaço, pois – a partir do comportamento dos personagens – acaba por nos advertir que muitas dessas relações ainda estão vigentes até os dias de hoje.

Além da riqueza em si, desde os diálogos até os figurinos e os cenários precisos, o filme coloca as mulheres como protagonistas, tanto as brancas quanto as negras, embora deixando muito evidente o lugar de cada uma delas nesse universo onde cada uma, a seu modo, é explorada.

Interessante também é o paradoxo que se instaura, considerando que as mulheres brancas, apesar de representarem o projeto colonialista e escravista, também tem as suas fragilidades, ao mesmo tempo em que, as negras, não obstante sua condição de humilhadas, também demonstram sua força de resistência. Entre supostas aristocratas decadentes e ex-escravizadas um embate sobre uma nova realidade onde as situações se repetem com outras roupagens. Um extrato do ontem e do hoje fazendo uma alegoria de nosso imaginário e da superestrutura que sustenta nossa sociedade capitalista, colonialista e reacionária.

Mas o filme “Todos os mortos”, sem perder sua postura crítica e materialista da história, também está repleto de uma poética que nos conquista, no bom sentido, como uma grande obra de arte. Desde a pequena e grandiosa participação da cantora e compositora Alaíde Costa, muito rica e emocionante a cena em que interpreta a ex-escravizada Josefina, moendo, preparando e coando o café, ouro da época, numa imagem sucedida com a chuva que escorre através da janela, enquanto ela entoa um canto afro, em sua língua.

Sem esquecer os poemas de Cruz e Souza e a postura feminista e revolucionária de Iná, interpretada por Maiwsi Tulani, uma ex-escrava, testemunha real do principal problema que até hoje está presente em nossa sociedade, ou seja, a exclusão e a hierarquia racial que definem o destino das pessoas. Essa personagem é a figura da mulher negra buscando não só um lugar no mundo, mas também sua dignidade como ser humano, considerando que, mesmo após a chamada abolição, os negros e as negras não foram incluídos nesse modelo de sociedade, mas sim, excluídos, marginalizados e permanentemente subjugados.

Outro dos grandes méritos e importância da obra está em sua capacidade de, mesmo tratando-se de um momento pós-abolição, nos propiciar a reflexão e a compreensão do Brasil atual que em muito ou quase nada se diferencia daquele momento. Assim, as cenas e os cenários, desde o interior e os arredores de uma casa no bairro do Campos Elísios do final do século XIX, estabelecem um diálogo onde as imagens evidenciam os vestígios de uma escravidão e um racismo que, apesar de aparentemente terem mudado de forma, permanecem como uma herança maldita. Tudo isso se dá a partir dos figurinos e discursos que se mesclam numa espécie de espaço poético que desfaz a fronteira entre o passado e o presente.

O filme também se instala num paralelo entre o final do século 19 e o início do 21, na medida em que o racismo e a hierarquia racial da Colônia e Império continuam em voga, desde o comportamento das pessoas até os elementos do cotidiano dos brasileiros. Tudo isso representado não apenas nas antigas mansardas ocupadas pela ex-elite paulistana, mas também reveladas nas casas e apartamentos da atualidade, lugares esses que preservam o apartheid, desde os quartos de empregada até os elevadores de serviço. Obviamente, é escusado dizer que a grande maioria dessas empregadas domésticas, que o eufemismo pequeno-burguês prefere chamá-las de “secretárias”, são mulheres negras que, de uma forma ou de outra, são um retrato vivo de uma perversa herança daquilo a que até hoje nos define como sociedade.

Ademais, na impossibilidade de abarcar todos os elementos que constituem a beleza e a sinceridade dessa obra, “Todos os Mortos” também merece uma observação sobre o cuidado e o carinho com que seus diretores trataram a questão da trilha sonora. Convém ressaltar a presença da música europeia, a partir da imponência do piano como uma marca da colonização presente em toda a trama, bem como os ritmos dos tambores africanos e a kalimba como um processo de resistência. No contraponto, como uma possibilidade de inserir a atualidade, utilizaram-se de ruídos contemporâneos como barulho de skates no cimento, helicópteros, carros em movimento e outros. Trata-se de uma inserção proposital, não como se fora um ato de rebeldia, mas pela proposta de demonstrar que a questão do racismo e escravidão não são problemas do passado, pois continuam presentes em nossos dias.

No resumo da ópera, “Todos os mortos”, de Caetano Gotardo e Marco Dutra, é um soco no estômago, uma ferida aberta que incomoda e convoca a “todos os vivos” para uma reflexão e crítica sobre o mundo herdado no buraco negro desse mundo que necessitamos transformar.

Wilson Coêlho

Wilson Coêlho

Poeta, tradutor, palestrante, dramaturgo e escritor com 17 livros publicados, licenciado e bacharel em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela UFES, Doutor em Literatura pela Universidade Federal Fluminense e Auditor Real do Collége de Pataphysique de Paris. Tem 22 espetáculos montados com o Grupo Tarahumaras de Teatro, com participação em festivais e seminários de teatro no país e no exterior, como Espanha, Chile, Argentina, França e Cuba, ministrando palestras e oficinas. Também tem participado como jurado em concursos literários e festivais de música.

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