O conto do embargo cervejeiro: da “filantropia” à (in)segurança jurídica

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Saudações, cervejeiros embargados!

Vamos falar hoje sobre o (pós) factum do maior evento de todos os tempos da última semana. Ou melhor, vamos falar de algo anexo a ele.

Sim, vamos falar do evento da cervejaria do herói espartano com seu elmo dilacerado. Mais especificamente do imbróglio que envolveu a importação e a não disponibilização das cervejarias americanas no evento.

Falar de embargo de “cervejarias gringas” ou “estrangeiras” seria impreciso, já que apenas as americanas não compareceram ao evento, ao passo que as argentinas marcaram presença, engarrafadas.

Inicialmente, cumpre destacar que o texto a seguir não trata do evento propriamente dito. Até porque eu não fui ao evento, não tenho como comentar sobre seus pontos altos ou baixos, ainda que por procuração. Ademais, isso já foi amplamente debatido e comentado nos mais diversos grupos de WhatsApp e nos perfis dos influencers que são doutores sem doutorado.

Então, o que me resta é comentar o que aconteceu antes do evento, que foi o embargo por parte do MAPA (Ministério da Agricultura e Pecuária) das cervejarias americanas que seriam servidas nas torneiras do evento. E que foi apenas minimamente mencionado pela cervejaria organizadora pouco tempo antes do evento ocorrer, sem nenhum pronunciamento posterior.

Esse será o cerne do texto de hoje, o embargo e o imbróglio (jurídico) por ele gerado.

O embargo – o papel do MAPA

Para começar o debate propriamente, há de se falar que todos os comentários tecidos se baseiam nos autos do processo nº 5081448-32.2023.4.02.5101, da Justiça Federal do Rio de Janeiro. Ademais, gostaria de tentar dar uma ênfase menos (ou, pouco) jurídica para o texto, para que uma maior parcela dos leitores seja capaz de compreender o que houve. Isto é, vamos apertar a tecla SAP.

Assim, o processo mencionado se trata de um mandado de segurança impetrado pela cervejaria organizadora do evento épico com o intuito de liberar as cervejas embargadas pela autoridade coatora (responsável pelo desembaraço, qual seja o MAPA). O papel do MAPA na vinda das cervejas para o Brasil é atestar as condições fitossanitárias da importação, dentre outras coisas (de acordo com a Licença de Importação na Instrução Normativa nº 67, de 05/11/2018).

Contudo, não é algo fácil de se fazer. Para importar as cervejas americanas, da maneira correta, segue-se uma miríade de protocolos e uma burocracia singular, não por menos, são os atos e requisitos obrigatórios para um evento desse porte.

A razão propriamente dita do embargo não foi por nenhuma barreira sanitária ou qualquer problema com o produto em si, e, sim, com a modalidade de importação escolhida pela cervejaria organizadora: um evento não-comercial, uma degustação cervejeira sem fins lucrativos.

Por mais que o contra-argumento da parte impetrante seja razoável, já que, de fato, não cabe, prioritariamente, ao MAPA definir se um evento é ou não feito com fins comerciais, denota-se que a premissa de que se estava “visando fomentar a cerveja artesanal no país” é genérica e pouco contundente.

Definitivamente, o MAPA cumpriu de forma escorreita o seu papel, mais uma vez, parabéns ao serviço público brasileiro.

Os fins (não) comerciais: ou da inexistência da filantropia cervejeira

Assim, chegamos ao ponto fulcral de toda a discussão encetada entre o MAPA e a cervejaria organizadora. Como é possível se aferir que um evento cervejeiro não tem fins comerciais, mas são vendidos ingressos? Aliás, eram vendidos e não eram baratos.

Claramente, não se tratava de um “concurso de cervejas”, em que juízes atribuiriam notas e dariam seus vereditos sobre os exemplares submetidos ao certame. Não, longe disso, era um evento festivo de degustação livre de cervejas.

Por sinal, o método utilizado de serviço era o self-service (ou open bar, como se denomina também), cada um poderia se servir como quisesse das cervejas do evento (exceto as “cervejas da adega do cervejeiro”, mas isso já foi uma decorrência do embargo do MAPA).

Será que alguém acreditou que o evento era voltado à filantropia? A Justiça não caiu nessa…

Alega-se para a cobrança dos ingressos que: “os valores cobrados a título de ingresso não seriam suficientes para custear o evento e não serviriam para caracterizar o evento como tendo fins comerciais”. Essa negativa foi recusada pela justiça pois não cabe aprofundamento nas provas alegadas quando se escolhe a via do mandado de segurança.

Contudo, por ser um evento privado, em que não há prestação de contas do que foi arrecadado e do que foi gasto, o argumento levantado acaba sendo inócuo. Inobstante, pelo princípio da alteridade nas relações econômicas, o risco do evento cabe ao proponente, de maneira que não se pode descartar a possibilidade de se ter prejuízo, ao mesmo passo que o organizador também pode ter lucro.

Nem o lucro nem o prejuízo são garantidos, daí não podendo se definir, previamente, se um evento não tem fins comerciais apenas porque ele pode ter prejuízo. Isso atenta contra qualquer regra mercadológica. Quem monta o evento dessa magnitude está sujeito ao lucro, ou ao prejuízo, e cada um que lide com isso.

O evento não era gratuito, não tinha uma cobrança simbólica de valor, logo, o fim comercial estava mais do que demonstrado. Isso é ponto pacífico.

Da segurança jurídica, ou da sua falta (de noção)

Um argumento meta-jurídico utilizado pela cervejaria organizadora foi que seguimos o mesmo protocolo do ano passado e deu certo. A conclusão por eles aferida é: não há segurança jurídica no Brasil!

Preliminarmente, há de se denotar que esse (pseudo) argumento é falso em sua gênese, simplesmente porque não segue a congruência lógica argumentativa, de Se A então B. Parte-se para incorreção de que, mesmo não seguindo as premissas jurídicas no ano passado, o mesmo entendimento deveria ser aplicado esse ano.

Certamente, David Hume se revirou no caixão com tal indulgência à causalidade. Foi assim que ele acordou Kant de seu “sono dogmático”, saliente-se.

Inobstante, é até engraçado observar como o argumento da “insegurança jurídica no Brasil” é levantado por qualquer liberalóide sempre que seus anseios claramente comerciais são contrariados. Pior ainda, no caso não houve “insegurança” jurídica, o que houve, ano passado, foi um deslize, um lapso do órgão estatal ao não embargar a entrada das cervejas para o festival que claramente tinha um viés comercial explícito.

Ainda assim, ouso dizer que a premissa da “difusão da cultura cervejeira” e sem um intento “comercial” poderia ter sido contornado juridicamente pela cervejaria organizadora. Ela poderia ter criado uma associação civil para gerir o evento, e vender os ingressos na forma de associação ao público. Claro que isso demandaria uma organização ainda maior e muito mais tempo para se concretizar, mas seria a forma ideal para provar a finalidade não-comercial do evento.

Saideira

Um dos pontos bastante criticados na forma como o caso foi conduzido diz respeito à quando os fatos comentados se tornaram públicos. Sim, eles foram trazidos à tona apenas com poucos dias do acontecimento do festival. Quando muitos dos que compraram ingressos já estavam no local do evento ou a caminho da roça (literalmente).

Caso a notícia tivesse sido divulgada antes era bem provável que tivesse havido uma enxurrada de pedidos de cancelamento ou de ressarcimento dos ingressos. O que nos leva ao questionamento: se o evento era filantrópico (sem fins lucrativos) a possibilidade do cancelamento ou ressarcimento geraria prejuízo? Se sim, então o evento tinha claramente um intuito comercial em seu cerne.

Derradeiramente, há de se compreender que um evento desse porte facilita sim a difusão da cultura cervejeira e contribui para sua melhoria e para o seu desenvolvimento. Porém, esse argumento, por si só, não pode ser suficiente para negar o caráter comercial do festival. Negar que se visava ao lucro é negar a existência mais ululante do evento cervejeiro em apreço.

Ainda bem que a justiça não caiu nessa falácia lógica-argumentativa-jurídica.

Recomendação Musical

Uma vez que estamos falando de cervejas americanas e de fins (não) comerciais (travestidos de puro suco de capitalismo). Não existe canção que simbolize mais a antítese argumentativa trazida no texto que a executada pela banda de alternative metal: Five Finger Death Punch, com a música: American Capitalist.

Saúde!

 

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

Sigam-me no Untappd (https://untappd.com/user/Ericksen) para mais avaliações cervejeiras sinceras, sem jabá (todavia, se for dado, eu só não bebo veneno).

A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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2 Comments

  • Gustavo Guedes

    Muito bom o artigo. essa de “evento sem fins lucrativos” foi de doer num evento que cobra módicos 500 reais para entrada kkkkk.
    foi tudo muito bem arquitetado para ninguém pedir reembolso, só informaram na véspera do problema, e muitos dos que foram, foram atrás das gringas.

    • Lauro Ericksen
      Lauro Ericksen

      Exatamente, meu amigo! As pessoas não tiveram nem tempo de pensar no que fazer. Tendo em conta que o processo se iniciou no dia 01 (na terça-feira), o fato poderia (e deveria) ter sido comunicado bem antes aos consumidores. Mas não fizeram assim… onde ficam os valores???

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