Em má Companhia

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A Companhia das Letras é uma das maiores editoras do Brasil e, muito provavelmente, a mais admirada. A excelência editorial e a curadoria impecável do seu criador, o editor Luiz Schwarcz, fizeram com que a empresa sediada na Rua Bandeira Paulista, em São Paulo, não parasse de crescer em número de publicações, volume de negócios e espaço na mídia, uma vez que atraiu para o seu time de autores muitos dos mais proeminentes nomes das letras nacionais, além de ter virado a queridinha do hype no circuito Vila Madalena – Livraria da Travessa lá onde o Brasil não conhece o Brasil.

A visão de mercado de Schwarcz, profundo conhecedor da realidade livreira brasileira por ter sido egresso da Editora Brasiliense, uma das maiores do país antes do surgimento da Companhia fundada por ele, o levou a procurar um banco para ser sócio de sua empresa. Dessa forma, criou-se a simbiose perfeita para um negócio bem sucedido: um sócio capital que entrou com o dinheiro e outro operacional que cuidaria de todo o trabalho e um enorme conhecimento do negócio. Era a expressão popular da junção da faca e do queijo elevada a um novo patamar. Se a gestão fosse boa, não haveria erro. O céu não era o limite.

Um amigo escritor descreveu certa vez o Luiz como um homem riquíssimo que tem a oportunidade de trabalhar com o que ama, casado com uma mulher incrível, mas que pessoalmente é sério, casmurro e sisudo. O que levou meu amigo a decretar: “ele é a prova de que a felicidade não traz felicidade!”

Continuando: as décadas provaram que aquela editora tinha nascido para brilhar. Com o tempo, passou a ser muito difícil pensar em um autor consagrado que não estivesse em seu catálogo. Famosos que se aventurassem pelas letras também eram rapidamente cooptados para o portfólio da voraz casa editorial paulistana. Logo, os tentáculos da Companhia dominavam boa parte da estrutura de distribuição brasileira, tornando praxe uma política predatória de consignação bastante agressiva contra suas concorrentes menores, mantendo fora do jogo editoras pequenas, independentes e regionais. A prática também era por demais injusta com pequenas livrarias, aquelas que não faziam parte de grandes redes e que estavam fora dos shopping-centers da moda.

No longo prazo, todos vimos o que aconteceu: uma redução acelerada do número de livrarias no Brasil ao mesmo tempo em que as vendas de livros crescem ano a ano. Um indicativo da brutal desigualdade resultante da concentração de dinheiro e poder nas mãos de poucos: poucas editoras, poucas redes de livrarias, geralmente sediadas numa mesma região do país que todos sabemos qual é.

O abismo a separar as duas realidades se tornou ainda maior quando a empresa entrou na era das grandes aquisições, tanto sendo adquirida pela americana Penguin e ela própria comprando concorrentes nacionais como a Objetiva, entre várias outras.

Recentemente, esta mesma Companhia das Letras resolveu posicionar-se em favor da democracia e contra a ascensão da extrema direita ao poder, emitindo um comunicado em favor de Fernando Haddad em 2018 e produzindo um bonito e necessário vídeo com os seus principais autores usando seus livros pra fazer o “L”, símbolo do outro Luiz, o Presidente Lula. O Shwarcz sabia que a eleição do tiozão do baixo clero, que nunca passou de um fantoche autoritário cheio de filhos bobalhões, significaria (como se constatou depois) no completo desmonte do setor cultural e educacional do país, prejudicando dois dos alicerces que sustentam o mercado editorial brasileiro. A posição da Companhia das Letras, portanto, foi acertado e coerente, louvável até, eu diria.

Luiz Shwarcz foi um raro empresário rico brasileiro que teve coragem de não abraçar o ideário conservador e fascista, tão entusiasticamente defendido pela nossa burguesia, utilizando muletas falaciosas como “meritocracia” ou finas camadas de verniz argumentativo como “defesa da livre iniciativa”, “diminuição do tamanho do estado” e outras bobagens que só visam cultivar seus preconceitos atávicos e tornar perene a desigualdade que os mantém, não só no topo da pirâmide social, mas muito distantes da base.

Contudo, no entanto, entretanto e (perdão) todavia: se a Companhia das Letras e seu gestor são tão favoráveis à democracia e à justiça social a ponto de se expor intensamente na defesa da democracia brasileira em 2018 e 2022, por que muitas de suas ações e posturas diante do mercado de livros são tão abusivas e antidemocráticas? Há décadas, as práticas adotadas pela empresa prejudicam pequenas livrarias e editoras independentes. Recentemente, um episódio envolvendo a minha editora, Escribas, mundialmente sediada em Natal, me fez sentir na pele toda a avidez da Companhia das Letras para pisar (e se possível, esmagar) quem é menor que ela.

Como alguns têm conhecimento, a Escribas esteve a ponto de fechar as portas definitivamente em 2022. A pandemia foi especialmente dura conosco que já vínhamos atravessando um período de prolongado aperto financeiro, sobrevivendo muito proximamente do limite prudencial entre saídas e entradas. A volta dos eventos presenciais e de programas de incentivo ao mercado literário por parte do Governo do Estado do Rio Grande do Norte nos concedeu uma nova chance, fornecendo o fôlego que nos faltava para “desistir de desistir”.

E foi justamente devido à realização de um evento presencial, a Feira de Livros e Quadrinhos de Natal, que sofremos as consequências do jeito Companhia das Letras de ser e agir. Achamos que seria legal ter alguns títulos da empresa para diversificar nosso acervo durante o evento. Solicitamos a consignação a uma pequena livraria local (que não revelarei aqui o nome para que não sofram represálias). Ao negociarmos, a primeira surpresa: a editora que costuma ser tão generosa na concessão de descontos para grandes redes e distribuidoras (chegam a aplicar 60% na consignação) não nos concederia mais do que 30%. Não fiquei feliz diante da condição injusta, mas aceitei, afinal, não teria custos para produzir os livros e os 30%, por mais que representassem pouco, seriam lucro.  Mas foi na hora de devolver e prestar contas que os paulistanos resolveram mostrar as garras.

Após entregar de volta os livros que sobraram da feira e receber deles a nota com o valor que eu deveria pagar, encontrei dias depois uma enorme caixa cheia de livros deles que não tinham sido vendidos e que eu deveria devolver a eles de forma a abater da conta que eu tinha a pagar. Nesse momento, eles simplesmente disseram que não aceitariam e que se eu não pagasse por aqueles livros, eles obrigariam a pequena livraria que serviu de intermediária entre nós arcar com os custos. Como vi que não tinha jeito e que eles estavam irredutíveis, trouxe comigo os livros que estava sendo obrigado a pagar de forma a não prejudicar os livreiros parceiros que me forneceram.

Com minha editora passando pelo aperto do qual está tentando se recuperar, obviamente tive bastante dificuldade em pagar a conta surpresa e só agora em março (6 meses após a feira), terminamos de quitar a dívida com a livraria, pois a Companhia das Letras já havia recolhido dela a sua parte. Ou seja, como bônus, ainda arruinei o relacionamento com esta livraria que vinha sendo uma parceira bacana e que agora os donos não querem me ver nem fantasiado de Gutemberg.

Resolvi relatar esse caso para chamar a uma reflexão: até que ponto você estaria disposto a ir para ser líder de mercado? Você prejudicaria sem pestanejar aqueles que fossem menores que você para ser o maioral do pedaço, o senhor absoluto da cadeia alimentar, o macho alfa do bioma? E o quão contraditório é uma empresa defender a democracia, a justiça social, fazer o “L” (literalmente) com seus livros e na hora de agir de forma justa, não demonstrar nenhuma compreensão por outra do mesmo segmento que está em posição de vulnerabilidade com relação a ela? Será que os autores progressistas da Companhia das Letras têm conhecimento de como ela age com uma editora menor e com pequenas livrarias país afora que ousem tentar algum tipo de parceria com ela?

O que eu posso concluir após este episódio é que a distância entre a imagem projetada pela maior editora do país e a sua verdadeira face é quilométrica. Eles parecem descolados na publicidade, os livros são ótimos, os autores e autoras excelentes, os projetos gráficos lindíssimos, mas se você tiver uma pequena editora ou livraria, cuidado. O que eles podem fazer contra você não é nada admirável.

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CRÉDITO DA FOTO: André Ávila / Agencia RBS

Carlos Fialho

Carlos Fialho

Autor, editor, redator e gestor de projetos.

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