Dois Paulos, uma Juliette e o Brasil

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Quando Cazuza se foi, em julho de 1990, aos 32 anos, ficou no ar por semanas uma canção escrita por Paulo Coelho e gravada pelo cantor vitimado pela aids que vaticinava: “Alguém quando parte é porque outro alguém vai chegar”.

Foi o que vimos, de forma inescapável, praticamente ao mesmo tempo, na noite de terça-feira desta primeira semana de maio no Brasil. Alguém muito querido desse corte geral e difícil de definir sob o rótulo de povo brasileiro se foi para sempre: o ator e multi-instrumentista do espetáculo solo ou coletivo Paulo Gustavo.

Mas alguém igualmente amado dessa maneira inclassificável com que devotamos sentimentos a pessoas públicas chegou: a mais autêntica nordestino-paraibana de todas as telas, vencedora da edição de número 21 do Big Brother Brasil, Juliette Freire.

Em dois míseros parágrafos, este texto diante da sua pessoa tocou no nome de três das pessoas mais famosas do Brasil-povão em todos os tempos: Paulo Coelho, Paulo Gustavo e Juliette. Não é recomendável, de bom tom ou inteligente em colunas do tipo cultural fazer elogios ou mesmo reconhecimento a nenhuma das três. Não em geral.

Certo, com a partida abrupta Paulo Gustavo deixou na terra cá embaixo um halo ligeiramente diverso do que normalmente projetava quando entre nós. Era extremamente popular, o novo queridão da ex-classe C a esta altura já saudosa do lugar que ocupou ainda recentemente na história política, econômica e social do país.

Mas não digam que era matéria de relevo para a crônica cultural mais letrada porque definitivamente não era. Eu mesmo nunca apreciei sua forma de cinema, recordista em bilheteria ao ressoar expectativas de outro tipo de brasileiro. Como muitos que podem estar lendo este texto agora, eu preferia algo menos direto e estridente. Mas assisti a filmes e programas dele, sim, embora sem dar a importância que reservo para produtos mais significativos pra mim.

Também é certo que assistir – e muito menos comentar – um programa como o BBB não acrescenta credibilidade alguma a quem se aventura a fazer qualquer digressão sobre a paleta de opções culturais à disposição do leitor, do espectador, do ouvinte. Nem mesmo quando o programa em questão magnetiza um país inteiro – ou sobretudo neste caso.

Isso está mudando. Vai mudar. Certo segmento da inteligência oficial do país, ainda fora da academia, como estrelas do telejornalismo político, vem declarando sem pudor que assiste, torce, captura emoção diante do que nunca foi considerado como mais que uma lastimável experiência de exibicionismo gratuito e condenável.

No meu caso, tenho uma necessidade que não sei explicar de conexão com tudo ou grande parte do que faz a média do país se interligar. O livro do momento eu tenho curiosidade de ler, a música que faz todo mundo cantar quase sempre chega aos meus ouvidos e à minha boca, um programa de televisão aberta que faz as maiorias pararem diante dele naquele horário regular tem grande chance de ter a minha adesão impressionada e cheia de interrogações. A própria TV aberta em si eu não consigo ignorar, ainda que nos piores momentos.

Igualmente certo é lembrar o quanto o segmento literário jogou pedras em Paulo Coelho durante aqueles anos em que ele fazia sucesso em vendas e leitores interessados no que seus livros diziam. A academia – essa pobre academia que hoje luta de forma injustamente desigual contra um governo anticonhecimento que rejeita a ciência – cansou de passear pelas livrarias sem olhar nem de raspão para os títulos de Coelho nas vitrines principais. Pois eu li quase todos os livros do tal mago, apreciei cada um deles e tanto gostei que sou incapaz até de avaliar: quando leio um deles, e faz tempo que não o faço, mas nem por isso esqueci a sensação, experimento um tipo de fruição muito diverso do que sinto diante de qualquer outro tipo de texto. Algo sensorial que não tenho como descrever, mas do qual sei o bastante para afirmar que é como se abrisse um tipo de porta para um espaço especial onde a avaliação convencional de uma literatura não faz nenhum sentido. É outro papo, pra definir da forma menos elaborada possível – e que seja talvez a melhor forma de me aproximar ao máximo do que quero dizer.

Dois Paulos, uma Juliette e o Brasil no que parece ser o seu pior momento. Um mal estar que no entanto não impede que um país descubra uma nova paixão coletiva inesperada ou perceba a extensão de uma perda igualmente não prevista ou imaginada.

Trata-se aqui de uma morte e um nascimento, ambos extremamente simbólicos para além de literais, que parece nos dizer para não fazer pouco do que atinge tanta gente, para o bem ou para o mal. Seja a doença que com sua foice final devasta famílias e deixa incrédulo um povo diante do dirigente que ele em hora incerta elegeu ou a empatia da fama que emerge de um programa de televisão.

Que a canção de Paulo Coelho, Cartão Postal (já para o spotfy) gravada por Cazuza, um ícone dos seguidores – permitam usar a palavra agora tão “resignificada” – da audiência superior e requintada, na qual eu mesmo me incluo com ironia e tudo, funcione como trilha sonora involuntária dessa constatação sem pai nem mãe: os fenômenos de massa precisam ser reconhecidos, lidos e interpretados sem o ranço (olha o BBB empobrecendo de vez meu vocabulário) da restrição intelectual.

E por falar nisso, já me adianto: nada mais irritante do que usar essa palavra – intelectual – para desqualificar aquilo que não se conhece e que por isso se teme. Não é disso que se trata.

Tião Vicente

Tião Vicente

Jornalista e servidor público (às vezes essas duas atribuições se confundem). Nasceu por acaso em Caicó, cresceu em Parelhas, estudou em Recife e Natal, aprendeu jornalismo e juventude nesta última, cansou um pouco e mudou para Brasília, trabalhou em edição em jornal e TV até fazer um concurso público para entregar esse brilhante currículo à emissora de tevê da Câmara dos Deputados. Tem funcionado até hoje. Por fora, pratica essas infidelidades paraliterárias. Tem uma central de blogs, quase todos esquecidos (para referência, arrisque novosopaodotiao.blogspot.com).

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