Na hora do perigo

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Durante a leitura do volume ‘De gados e homens’, de Ana Paula Maia, emanam um turbilhão de ideias diante dos olhos atentos e curiosos, como se fora uma varredura nas entrelinhas de uma escrita repleta de situações inusitadas, apesar de parecerem, em alguns momentos, previsíveis. Mas ao término do capítulo 11, o último, surge uma palavra quase como uma sentença: fantástico! Depois do último capítulo, como uma chave de ouro, o livro se encerra com uma Nota Final, trecho de Notas do subterrâneo, de Dostoievski.

No que diz respeito ao que a leitura provoca, já nas primeiras páginas, regurgita um fragmento de Torquato Neto quando diz que “quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi”.

Depois, na medida em que a narrativa vai se desenvolvendo, estamos diante da máxima sartreana de que “a existência precede a essência”, considerando que os personagens, apesar de fortes e bem definidos, não têm um significado a priori, mas se constroem a partir de suas ações que, sem quase nenhuma rubrica ou qualquer descrição psicológica, se revelam nos momentos de suas falas. Assim, não há espaço para os estereótipos em seus personagens.

Referirmo-nos a Sartre dá a impressão de que a obra possa ser entendida como um recorte existencialista, mas isso pode ser uma armadilha. Por um lado, se existe mesmo a possibilidade de uma leitura existencial ela se dá no plano do existir puro e simples, como um estar aí, no mundo, no cotidiano, no trabalho e, acima de tudo, refém da finitude e da impotência.

Por outro, também estamos diante de uma tragédia, levando em conta a fatalidade. O que acontece é o que tem que acontecer, a reflexão deve ser feita não para mudar qualquer itinerário, para se ter a consciência da chegada ao destino. O livre-arbítrio é uma opção daquilo que já está dado. “Ganharás o teu pão com o suor de teu rosto” e, no domingo, dia de descanso, tanto para os homens quanto para o gado.

Em ‘De gados e homens’, os gados e os homens se separam apenas pelo número de patas. De certa forma, como afirma George Orwell, na Revolução dos bichos: “As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já era impossível distinguir quem era homem, quem era porco”.

Trata-se de uma narrativa repleta de “sangue e vísceras, de sujeira e cheiros ruins”, onde uma sucessão de sórdidos e inusitados torna-se ingrediente de sua trama, desde os problemas de um homem com o olho de vidro, o outro come cogumelo e se veste de alce, passando pela confusão entre vacas libanesas e israelenses, abortos e suicídios e tantas outras coisas.

O palco central é um matadouro e parece assaz oportuno, considerando que as palavras de Ana Paula Maia, com frases curtas e precisas, soam como marretas, machadinhas, facas e outros instrumentos que garantem a precisão na hora do abate, eufemismo para a morte.

Para além dos personagens que atuam no matadouro, há dois grupos que participam quase como figurantes, mas que – de certa forma – enriquecem a narrativa, na medida em que referendam a vontade da obra, a vontade no sentido daquilo que está em potência. O primeiro é o de estudantes acompanhados de um professor e interessados em conhecer a linha de produção da carne. Ficam muito assustados com o processo e acusam o personagem de assassino, embora diante de um hambúrguer poderiam até mesmo ouvir uma vaca dizendo: “este é o meu corpo, comei em memória de mim”.

O segundo grupo é o de pobres que se aproveita, quase disputando com os urubus, daquela carne que não serve ao matadouro, das vacas que morrem antes de serem abatidas, além das suicidas.

Enfim, conforme o protagonista Edgar Wilson (mistura de Edgar Allan Poe com William Wilson, que é título de um de seus contos), o atordoador, ou seja, aquele incumbido de “humanizar” o processo do abate, “em lugares onde o sangue se mistura ao solo e à água é difícil fazer qualquer tipo de distinção entre o humano e o animal”.


FOTO: Daniel Marenco
Wilson Coêlho

Wilson Coêlho

Poeta, tradutor, palestrante, dramaturgo e escritor com 17 livros publicados, licenciado e bacharel em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela UFES, Doutor em Literatura pela Universidade Federal Fluminense e Auditor Real do Collége de Pataphysique de Paris. Tem 22 espetáculos montados com o Grupo Tarahumaras de Teatro, com participação em festivais e seminários de teatro no país e no exterior, como Espanha, Chile, Argentina, França e Cuba, ministrando palestras e oficinas. Também tem participado como jurado em concursos literários e festivais de música.

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