Há elitismo na cultura cervejeira?

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Olá, cervejeiros!

Falar sobre cultura e cerveja é sempre um desafio, ainda mais quando se propõe a ter uma opinião independente e desvinculada de qualquer amarra comercial. E isto, todos sabemos, sempre foi a marca indelével de todos os textos até o presente momento (e que eu espero continuar sendo).

Um dos temas recorrentes, por mais que muita gente do “meio cervejeiro” não goste, são os preços praticados no mercado. Sempre existe aquele papo de custo-Brasil, dólar mais caro, inflação, insumos importados, e todo esse mimimi.

O problema é que todas as vezes que se levanta esse escudo  argumentativo, quem o levanta, esquece de mencionar a “aura” de sacralidade envolta na cerveja artesanal, como se ela por si só ostentasse um privilégio inacessível aos demais mortais.

Então, é justamente sobre este tema, que eu já pincelei brevemente noutras passagens, que eu gostaria de retomar no papo cultural de hoje.

E para você, a cerveja artesanal está em um patamar de endeusamento elitista?

O prestígio da cerveja artesanal

Eu sempre acreditei, talvez ainda que de forma um tanto quanto ingênua, que a cerveja deveria ser sempre um veículo de democratização da cultura de uma forma mais ampla, que pudesse agregar elementos sociais (confraternizações), econômicos (o pão líquido na mesa do proletariado), gastronômicos (os mais diversos estilos e escolas cervejeiras ao alcance de todos), dentre outros.

Todavia, a crescente glamourização de espaços cervejeiros serve para afunilar o mercado e trazer um sectarismo “cultista” por assim dizer.

FOTO: Luna Garcia

Ao invés de representar um refúgio à massificação das grandes cervejarias, por vezes, a cerveja artesanal toma outros rumos, direcionamentos estes não guiados prioritariamente pela melhoria na qualidade e/ou em um menor consumo quantitativo. Isto porque, um dos adágios da cultura cervejeira é “beba menos e beba melhor”.

O beba menos já é algo implícito nas cervejas artesanais, que costumam (ao menos em sua maioria) possuir uma menor “drinkability” (uma menor capacidade de se tomar várias em sequência, mas isto varia de estilo para estilo, não é uma regra imutável) que uma cerveja de massa qualquer, ou uma dessas “puro malte”.

Desta maneira, o beba menos é mais um efeito que uma causa da própria cultura cervejeira, bebe-se menos porque as cervejas possuem essa característica como diferencial.

O beba melhor, por outro lado, não é necessariamente um efeito das próprias cervejas artesanais, seria propriamente um causa advinda do seio da cultura cervejeira artesanal “por si-mesma”.

Dito de uma maneira mais clara, não se bebe a cerveja artesanal primeiramente para depois se buscar a qualidade diferenciada que ela possa ter, pelo contrário, já que ela exibe uma qualidade superior em termos “normativos” às cervejas de massa. Tal requisito já a torna um produto diferenciado no mercado.

O problema reside justamente na glamourização da qualidade, como se ela fosse um artifício a ser utilizado de modo irrestrito e pouco didático por quem almeja albergar as cervejas artesanais em seus espaços de comércio.

A “camarotização” da cerveja artesanal

Por causa dos elementos destacados na seção anterior, a cerveja artesanal, por vezes, ao invés de assumir um protagonismo democrático ao acesso cultural e gastronômico acaba por ter um papel diverso e inverso. Ela se embrenha rumo à “camarotização” dos espaços cervejeiros.

Por mais que a ideia inicial de qualquer cervejeiro ou de qualquer cervejaria seja, por natural, expandir seu público e as fronteiras do seu alcance, algumas medidas tomadas dentro dos próprios círculos cervejeiros impossibilitam que o ideal inicial seja expandido, bem como acabam por gerar “ilhas” de degustadores que almejam desfrutar dos seus troféus cervejeiros em seu “clubinho”, ou seja, em seu “camarote”.

Aliás, a expressão “camarotização”, um neologismo que já foi tema inclusive da redação da seleção do vestibular da FUVEST, expressa algo sociologicamente próprio da cultura brasileira, que tende a ser recorrente em vários círculos sociais, e que não é estranha às particularidades da cultura da cerveja artesanal.

De maneira sucinta e esclarecedora, a camarotização é um fenômeno sociológico que expressa a separação entre diferentes elementos da sociedade em função da condição financeira das classes sociais.

O termo camarotização surgiu em função do famigerado vídeo de um alpinista social que se intitulava o “rei do camarote” e viralizou no YouTube na época da sua divulgação. No vídeo em comento, a figura em questão fazia sua auto-glamourização com espumante, demonstrando o quão especial ele era em um camarote VIP.

Bazófia!

Certamente que quando se fala em “camarotização” da cerveja artesanal está se tratando de uma simbologia alusiva ao vídeo referido, e não efetivamente a camarotes em boates ou espaços similares onde pessoas vão para consumir cervejas artesanais.

Os ditos espaços existem, não os nomearei, mas a “elite natalense” não se furta em pagar 60 reais ou mais em uma latinha de uma IPA de uma certa cervejaria mineira hypada, ou na reunião dos “doutores” (clubinho de “médicos cervejeiros”, não necessariamente doutores, na acepção própria da palavra) às sextas-feiras com gasto mínimo mensal estipulado na casa dos 5k.

O camarote não é necessariamente “físico”, mas suas barreiras transbordam para quem quiser enxergar.

Cervejas no tap e democratização

Um dos reflexos mais claros da camarotização em curso se dá pela diminuição de espaços cervejeiros que agreguem ao mesmo tempo vários taps (torneiras) de cervejas e de cervejarias diferentes.

É verdade que ultimamente temos visto o crescimento das próprias cervejarias locais oferecendo opções de taps para encher growlers, algo que aumentou exponencialmente em virtude da pandemia do COVID-19.

Todavia, a análise por ora encetada traça seu caminho para antes mesmo de março de 2020 (data do início da pandemia), quando espaços “multi-taps” já rareavam no cenário local.

Claro que a cultura do uso do growler (clique AQUI para saber mais) é fundamental para a expansão do cenários cervejeiro, não apenas por critérios de oferta, mas também, de economia e pelo seu viés ambiental de reuso.

Para além desses detalhes, a diminuição de espaços com taps variados favorece o oferecimento de garrafas ou latas, que, por terem um custo de produção maior, acabam favorecendo a glamourização outrora referida. A própria estética da arte contida na lata ou na garrafa já é direcionada para glamourizar o produto.

Espaços glamourizados servem para atrair curiosos, e também para atrair aqueles que serão “curiosos para sempre”, no sentido de serem nefelibatas neófitos. Aqueles que por mais que frequentem os espaços camarotizados serão “eternos aprendizes”, no viés de apenas estarem lá porque é um espaço caro, onde o prestígio é intrínseco ao que se está sendo consumido, onde a qualidade do produto não será, ao menos necessariamente, um elemento decisivo para que ele frequente tal local.

Por óbvio, apenas quando a pandemia estiver controlada e a maior parte da população imunizada, que os espaços com vários taps disponíveis sempre será uma opção mais em conta para aqueles que priorizam cervejas artesanais de qualidade, a preços mais acessíveis. E este é um movimento que perpassa também pela distribuição das cervejas, a quais, caso fique restrita à exclusividade, não impactará de maneira significativa os valores praticados.

De toda maneira, o importante é ter a noção que seccionar ambientes de modo a torna-los camarotes de cervejas artesanais é algo que apenas obstaculiza o consumo e consequentemente impede a democratização do líquido sagrado às multidões. Cerveja barata, de qualidade e acessível é tudo que o povo gosta. Infelizmente, espaços camarotizados são um veículo de elitização e de barreira para esse movimento cervejeiro.

Saideira

A cultura cervejeira deve ser sempre disseminada e incentivada para que seu crescimento represente uma maior oferta e uma maior diversidade de estilos e sabores. Creio que ninguém discorde desta formulação.

O que se busca, além disso, é que o crescimento deste nicho cultural também represente uma maior possibilidade democrática de acesso e de consumo, com formas mais amplas e sustentáveis de se adquirir e de se degustar o líquido precioso, contrapondo-se, desta forma, à camarotização dos espaços dedicados à cerveja artesanal.

Música para degustação

Os “reis do camarote”, em sua sanha por glamour e elitização sempre estão em busca de representações simbólicas do que seja dinheiro e sucesso, e tais elementos podem também ser encontrados dentro da cultura cervejeira. Por isso, como forma de crítica social ao fenômeno da camarotização, brindo-vos com a música Money for Nothing, da clássica Dire Straits.

Money for nothin’ and the chicks for free

 

Saúde e boas cervejas!

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

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A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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