O transe

PIX: 007.486.114-01

Colabore com o jornalismo independente

Sábado à noite. Volto para casa. Na Avenida Hermes da Fonseca, o trânsito começa a ficar mais lento. No céu, algumas nuvens pesadas transportam água mesmo não sendo inverno nessa época do ano. Um corisco risca a noite. Tento entender o que acontece. Prossigo dirigindo. Ao passar em frente ao 16º Batalhão de Infantaria Motorizada do Exército, sou arrebatado, atravesso um portal. A visão embaça. Sou transferido para uma terra distante, mas familiar.

O carro parece levitar. Tudo está translúcido. Ouço uma voz, ao longe, que grita em um alto falante com histerismo: “o exército vai marchar na rua esta noite”. Rostos e olhos transfigurados vibram com o disparate. Vê-se um carro estacionado, coladinho ao portão da Organização Militar, mas nenhuma movimentação de trânsfugas saindo lá de dentro.

Transeuntes do asfalto andam em zigue-zagues entre canteiros e calçadas; serpenteiam entre os carros. Nesse lugar, alguns parecem transtornados ou que estão “tremendo em coreias sem fim”.

Prepara-te, Jesus está voltando! Atônito, fico sem entender, porque a mensagem transcendente encontra-se ali. Supremo é o povo: lê-se numa faixa. Como advogado, transbordo de alegria. Ora, é princípio-fundamento de nossa República e está insculpido no artigo 1º, parágrafo único, da Carta Cidadã: “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Democracia participativa! Lembro-me do nosso juramento perante o pavilhão nacional. Em milissegundos, minha mente de linguista emenda uma transposição: o Povo é Supremo!

Mais adiante, transfiro meus olhos para um cão faminto. Está sendo seduzido com comida em troca de carinho. Balança a cauda alegremente, mas logo percebe que a transação é um golpe, um logro, uma trama. Rosna e mostra os dentes. Depois, afasta-se rapidamente.

Nesse lugar incrível, há crianças. Estão acompanhadas por adultos transigentes. São transportadas pelas mãos, mas parecem perdidas, sem rumo, sem futuro.

Toda a cena faz-me lembrar da descrição de Cascudo em Meleagro sobre possessão e reflito acerca de uma passagem do prefaciador, destacando a importância do tema do livro “que mostra, de maneira muito característica, quanto anda desorientada a população do nosso país, quanto se torna ela vítima de explorações grosseiras, baseadas em velhos processos de magia”.

Enfim, o automóvel transpõe outro portal. Aterrissa. Volto a ver as luzes nitidamente, a vista está clara. Sigo o meu caminho, achando que despertei de um transe.

—-

CRÉDITO DA FOTO: Adriano Abreu

Sandro de Sousa

Sandro de Sousa

Filho de Macau-RN, residente em Natal desde os 5 anos de idade. Licenciado em Letras Português-Inglês (UFRN), Doutor em Letras (UFPB) e advogado.

WhatsApp
Telegram
Facebook
Twitter
LinkedIn

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Mais lidas da semana