Conheci o escritor e jornalista Carlos de Souza em 2011, quando dei meus primeiros passos como pesquisador da literatura produzida no Rio Grande do Norte. Carlão, como era carinhosamente chamado pelos amigos, me deu vários conselhos sobre o terreno árido em que eu iria pôr os pés, ao me propor fazer crítica literária na província, área repleta de altos e baixos, me dizia ele com experiência própria.

Sempre atencioso, me presenteou com o único livro dele que eu ainda não tinha lido, ‘Cachorro Magro’. Com o passar dos anos sempre me dava força e me apoiava em meu trabalho sobre a literatura do Rio Grande do Norte. Em 2012, colaborou em livro organizado por nós, sobre o escritor Nei Leandro de Castro com o texto “Um Romancista Genuinamente Brasileiro”. Escreveu também sobre o nosso livro ‘Presença do negro na Literatura Potiguar e outros ensaios’ (CJA Edições, 2015); enfim, sempre nos apoiando.
Algumas vezes cedeu o espaço dele na Tribuna do Norte para que eu escrevesse resenhas sobre autores e livros. Quando foi editor do jornal O Galo me convidou para colaborar diversas vezes, e, na época, passou-me uma tarefa, que infelizmente não consegui cumprir: fazer uma entrevista com Woden Madruga, jornalista que Carlão tanto admirava. Todavia, eu me orgulho de uma entrevista que fiz com ele próprio, Carlão de Souza, e publiquei no livro ‘Impressões Digitais – Escritores Potiguares Contemporâneos, vol. 1’, em 2013.
Quando Carlão deixou de escrever resenhas literárias na Tribuna do Norte, escrevi entristecido, um artigo denominado “Os Falsários da Literatura Potiguar”; justifiquei que havia muito joio no meio do trigo: por causa de escritores que possuem egos enormes, não aceitam críticas às suas obras, críticos do porte de Carlão deixavam de escrever. Na época fui massacrado pelos que gostam de vida literária e mundanismo, todavia Carlão me passou uma mensagem parabenizando-me pela coragem em dizer muitas “verdades”.
Em um dos trechos da entrevista, onde explica seu desligamento, o jornalista comenta: “Até tentei fazer algumas críticas, mas era difícil demais. Acabava sempre magoando alguém. Aí desisti. Vivo numa província metida a besta que o resto do país ignora solenemente”.
Carlos de Souza e sua obra
Para o leitor mais jovem, que talvez não o conheça, Carlos de Souza é um importante escritor nosso, nascido na cidade de Areia Branca e radicado em Natal. Grande revelação dos anos 80, estreou com o livro Crônica da banalidade, novela (1988), e, em seguida, além do seu destacado trabalho como jornalista, sobretudo nos jornais Diário de Natal e Tribuna do Norte, continuou uma bela carreira como escritor, tendo publicado nos anos seguintes: Cachorro magro, poesia (1999); É tudo fogo de palha, teatro (2006); Cidade dos Reis, romance (2014), e, mais recentemente, Urbi, contos (2015).
Tive a honra de escrever resenhas sobre os dois últimos trabalhos literários dele, e as publiquei no livro ‘Os Grãos – Ensaios sobre Literatura Potiguar Contemporânea’ (2016).
A obra ‘Cidade dos Reis’ é um romance pioneiro no Estado, em se tratando de contar a história de uma cidade. Com desenvoltura, o romancista narra alguns dos principais fatos e personagens da cidade do Natal, ao longo do século XX, utilizando, como pano de fundo, a história de Jonas Camarão, desde a sua infância e juventude, o encontro com a sua adorada Mara, a dor da perda, as lutas, vitórias e desilusões, até sua velhice, no final do milênio passado.
Um leitor mais atento vai observar muito mais o relato de episódios reais do que propriamente ficção. Na verdade, o principal personagem é a própria cidade de Natal; outros ficam em segundo plano, tudo contado por dois narradores, um dos quais, de nome Juca Guiné, uma espécie de Câmara Cascudo local, que conhece muitos fatos e figuras da cidade, inclusive com episódios curiosos, como a passagem de Clarice Lispector por Natal, episódio este que a própria escritora iria descrever detalhando haver detestado a cidade. São relatos que misturam muito bem ficção e realidade.
Lendo essa obra me vem à mente a famosa frase de Tolstói: “Canta tua aldeia e serás universal”. Pode até parecer muito clichê, mas é com ela que reafirmo a importância de nos voltarmos para o que é da nossa terra.
Trabalhos dessa natureza cumprem uma função além do apenas literário.
Talvez, algumas lacunas sejam encontradas ao longo da narrativa, mas cabe ao leitor preenchê-las; há fragmentos que irão exigir redobrada atenção à leitura.
Por fim, vale salientar que muitos natalenses não sabem sequer a história do seu bairro, quanto mais a de sua cidade, e – o que é pior – não sabem amá-la. Essas pessoas precisam, urgentemente, ler o livro de Carlos de Souza. Não somente elas, obviamente, mas todos quantos buscam o prazer e o proveito da literatura.
Urbi
Em 2015, Carlos de Souza, que há muito tempo devia à literatura potiguar um livro de contos, surge com ‘Urbi’ (Sebo Vermelho Edições) justamente no ano em que se completam 27 anos de publicação do seu primeiro livro, ‘Crônica da banalidade’, uma novela que o lançou como escritor, reconhecido dentro das nossas letras.
Em ‘Urbi’ o autor atinge o momento culminante em sua carreira como ficcionista. Se, no seu romance de estreia alguns pequenos deslizes foram cometidos, no livro de contos ele chega muito próximo da perfeição estética a que uma obra de arte literária aspira. Aqui no Rio Grande do Norte, só os mais experientes têm atingido esse patamar.
Em alguns contos de Carlos de Souza, o narrador se preocupa em mostrar o outro lado da vida. Por vezes, como nos contos de Osair Vasconcelos, percebemos algumas marcas de memórias, de influências livrescas, de leituras. Deixando uma espécie de parábola, como por exemplo, no conto “A Cidade Escura”, para aqueles que leram a versão dos fatos observados pelo narrador. Isto nos remete ao ensaísta e crítico literário Walter Benjamin, que afirmou certa vez: “O conto é, ainda hoje, o primeiro conselheiro dos homens porque o foi outrora da humanidade, vive ainda secretamente na narrativa. O primeiro verdadeiro narrador é e continua a ser o do conto”.
‘Urbi’ contém oito contos, três deles premiados. Não bastassem esses contos, apenas “Eclésia” seria suficiente para o livro valer a pena. O escritor, dublê de jornalista, pegou um fato do noticiário e bolou uma história com um final moral muito significativo, onde percebemos claramente a influência do autor na história, sobretudo com a sua ideologia e seu ponto de vista religioso. Conto fantástico, esse, vale dizer.
Em outros contos, podemos inferir que o autor acredita em fatos históricos reconstruídos por quem narra a história e que estes fatos não necessariamente correspondem à realidade. A propósito, Walter Benjamin declara: “Narrar histórias é sempre a arte de as voltar a contar e essa arte perder-se-á se não se conservarem as histórias”.
Carlos de Souza, como os narradores dos contos citados por Walter Benjamin, dispõe de uma autoridade que lhe dá credibilidade, mesmo quando o fato descrito não seja verídico.
Entre o jornalismo e a literatura
No final de 2017, escrevemos artigo para o Tribuna do Norte, adiantando as comemorações de 30 anos do livro Crônica da banalidade, obra mais cultuada de Carlão.
Ao lado de nomes como Alex Nascimento, Ruben G Nunes e João Batista de Morais Neto, revelações da ficção potiguar na década de 80, Carlos de Souza se destacou com sua novela, cheia de ironia, sarcasmo, dentre outros elementos de uma boa narrativa.
O escritor nascido em Areia Branca, no finalzinho dos anos 50, ainda morou em Macau, antes de vir para Natal em meados dos anos 70. Com pouco tempo, Carlos de Souza estreou nas letras, publicando contos nos suplementos do jornal “A República”, de Natal. Tendo estudado comunicação social na UFRN, tornou-se um grande leitor, sobretudo de Charles Bukowski e Jack Kerouac, dentre outros ícones da contracultura.
Carlos de Souza estreou como repórter na Tribuna do Norte, por anos foi editor de cidades, manteve uma coluna de variedades, “Caótica Parabólica”, e trabalhou no Diário de Natal, como editor de cultura. Por fim, de volta à Tribuna do Norte, assinou durante anos a coluna “Toque – Livros e Cultura”, abordando obras e autores brasileiros e universais.
Carlos de Souza está incluso no trabalho ‘Ficcionistas potiguares’ (2010), de Manoel Onofre Júnior, é citado por Tarcísio Gurgel no livro ‘Informação da Literatura Potiguar’ (2001); foi incluído na coletânea ‘Novos Contos Potiguares’ (2017), organizada pelo jovem escritor mossoroense Thiago Jefferson Galdino, obra que traz contos inéditos e novos, e, também, de veteranos. E nos deu interessante depoimento para o livro ‘Impressões digitais – Escritores potiguares contemporâneos, Vol. 1’ (2013), do qual destacamos alguns dos melhores momentos a seguir:
ENTREVISTA
Carlos de Souza, fale-nos um pouco da sua infância em Areia Branca?
Carlos de Souza – Minha infância foi comum como a de todos os meninos de interior. Brincava na rua com os amigos, bola de gude, furachão, futebol. Mas era também louco por Histórias em Quadrinhos. Acho que foi daí que nasceu meu gosto pela leitura.
Ao terminar o curso secundário no Colégio Winston Churchill, de Natal, você faz vestibular para cursar Comunicação Social na UFRN. Por que essa escolha?
Carlos de Souza – A velha vontade de ganhar dinheiro escrevendo. Não deu para ganhar muito dinheiro, mas fiz uma família diferente, interessante, filhos legais, ex-esposas legais. Valeu a pena. Continua valendo a pena.
Em 1999, você ganha o Prêmio Othoniel Menezes de Poesia, com o livro Cachorro Magro, fale-nos um pouco dessa obra?
Carlos de Souza – Cachorro magro não é exatamente um livro de poesia. Eu queria fazer um poema longo, em que todas as convenções da poesia lírica fossem subvertidas. Mais uma vez não sei se alcancei algum êxito. Mas o livro foi premiado e isso em Natal não tem muito valor. Acho que em canto nenhum. O importante em um livro é quando ele é lido. O resto é perfumaria.
E o Carlos de Souza jornalista? Se sente realizado com a profissão que escolheu?
Carlos de Souza – O jornalismo é minha maior paixão. Ganha até mesmo da literatura, do cinema e demais artes. Tudo que eu quis fazer em jornalismo tenho feito em Natal. Não me arrependo de nada. Sempre que olho para trás sinto um arrepio de felicidade. Vivo no presente a doce experiência de comentar livros na Tribuna do Norte e tenho muitos projetos ainda para o futuro.
Carlos, você foi professor de Jornalismo, como foi a experiência de lecionar?
Carlos de Souza – Uma das coisas mais gratificantes que já me aconteceram. Fui professor substituto na UFRN e professor titular na UnP. Ainda hoje me comunico com meus alunos e tenho um carinho muito grande por todos eles.
Quem é o escritor Carlos de Souza?
Carlos de Souza – Um potiguar ciente de nossas limitações.
1 Comment
Uma tarde em que cá estava a memorizar momentos antigos com Carlão me vem relatos que definem tão bem esse cara hora humano demais , ora sério brincalhão demais, ora tão fiel ao outro, ao jornalismo, a literatura, a vida. Obrigada pela entrevista e por povoar minha tarde com esse poeta. Saudade de sua luz.