Em dezembro de 1999, há quase 20 anos, fui atordoado pela notícia da morte do poeta potiguar Black Out. Eu trabalhava na redação do extinto Diário de Natal e fui incumbido de registrar o fato. Resolvi escrever muito mais do que um mero obituário, ferido pelo drama de um artista massacrado pelo sistema e pelo preconceito do nosso mundo. Guardo esse escrito como algo que me veio da alma e que me serve como guia para entender a humanidade e rebuscar o meu humanismo.
Foto: Ivanizio Ramos
Eu
Eu sou um sonho
ou talvez um pensamento
jovem que gosta da vida
Eu vim pregar a prece
atual em poesia…
sem rimas e sem fantasias
Deixe-me dividir
para todos os dias
Sou um sonhador da paz
da fome
e da alegria.
E vocês são os sonhos
Um canto (meu reino)
um prazer que jamais será imitável…
(Black Out)
Poesia in black
Morreu Edgar Borges, o Black Out, o poeta preto, pobre e considerado louco pela sociedade. Vivia andando pelas ruas do centro da cidade alta, carregando seus papéis e fumando seu cigarro Belmont, vestido em suas roupas exóticas. Tinha todos os atributos de um artista maldito e discriminado.
Até o fechamento desta edição do Diário de Natal, o corpo de Black Out continuava no necrotério do Hospital Walfredo Gurgel. Sem parentes próximos, corria o risco de ser sepultado como um indigente.
Morou quase toda sua vida em Mãe Luiza, bairro que amava e onde era conhecido por quase todos os populares. Desce cedo começou a escrever sua poesia de cunho social e político. É dele o texto de ‘Canto à Paz’, um dos mais contundentes escritos contra as ações bélicas do ser humano.
Publicou em 1981, se único livro, ‘Duas Cabeças’, editado pela Cooperativa dos Jornalistas de Natal – Coorjonat, contendo inúmeros fragmentos poéticos escritos naquele período.
O jornalista Franklin Jorge, em seu livro ‘Spleen de Natal’, lançado em outubro de 1996, dedica um capítulo inteiro ao poeta negro, relatando inclusive as perseguições e torturas que Black sofria da polícia. No livro, o próprio poeta narra um episódio:
“Hoje mesmo me aconteceu uma coisa chata: quando eu ia atravessar a Avenida Rio Branco, na esquina da João Pessoa, um PM, do outro lado da calçada, me chamou. Fui e ele me perguntou meu nome e se eu era daqui mesmo de Natal. Estava grilado com a minha produção. Achou minha roupa estranha e pediu meus documentos. Me revistou alí no meio da rua como se eu fosse um criminoso.”
Essa não foi a primeira humilhação sofrida por Black Out. Foi perseguido nas ruas como um animal perigoso e incômodo. Porém, nunca matou nem roubou. Mas era pobre e tinha a ousadia de vestir-se de acordo com os caprichos de sua imaginação. “É o meu traje a rigor que incomoda eles”, costumava dizer o poeta.
Black Out podia ser visto trajando um blazer ou uma roupa lilás, ou um paletó e calças cor de goiaba, camisa azul celeste, pulseiras prateadas em alto relevo que realmente chamavam bastante a atenção. Mas o poeta nunca se importou muito com os comentários pejorativos sobre o seu modo de se vestir. Além dos modos exóticos, Black era conhecido pelos galanteios às garotas que frequentavam a noite, sempre ofertando seus versos e seu sorriso.
“Se eu descesse o morro de sandálias, vestido como todo mundo, as pessoas iriam logo pensar que eu sou um marginal… Se eu desço vestido assim, bem produzido, elas ficam pensando pelo menos que eu sou um marginal diferente, sacou o lance?”
Black Out foi preso inúmeras vezes, em algumas foi acusado de portar drogas, outras por mera implicância policial com a excentricidade de suas roupas. Em muitas das vezes apanhou e foi obrigado a fazer coisas impublicáveis. “Esses massacres me levaram à loucura. Eles me davam coronhadas na cabeça, rindo. O sistema não queria me ver feliz”, dizia Edgar.
Tais experiências agravaram seus problemas psiquiátricos. A partir de 1981 começou a ser internado no Hospital Colônia, graças a ajuda do padre Sabino Gentille. Ficou internado quase um ano.
Filho de Severino Borges e Maria Felícia, pais separados, Black Out nasceu em Mãe Luíza. Ainda menino, vendia cocadas nas ruas da cidade e dormia nas praças.
O poeta percorreu desde então muitas residências, fazendo pequenos trabalhos para sobreviver e comprar suas vestimentas. Ao lado do saxofonista Paulo Johnson, participou do Festival de Música do SESC em 1979. Dois anos depois, incentivado pelo poeta Jarbas Martins, Inscreve-se no Laboratório de Criatividade da UFRN, criado pela professora Socorro Trindade.
A partir daí passou a conviver com a poesia de João Gualberto, Chico Traíra, Milton Siqueira, Osório Almeida, Volonté, João da Rua, Chico Ivan, Adriano de Sousa, Jóis Alberto, entre outros.
Dialético, Black questionava todos os paradoxos de um sistema desumano. Íntimo dos mistérios profanos da cidade, o poeta tinha como terapia andar. “Tem gente que fica arretada e pergunta como eu consigo estar em vários lugares ao mesmo tempo”, dizia.
Edgar Borges produzia e vendia seus poemas intuitivos cheios de delírios nonsense. Pintava quadros expressionistas sobre papelão. Também pintava letreiros comerciais para sobreviver. E foi pintando a parede de uma casa que morreu, em uma triste ironia com seu apelido.
Agora pergunto eu, que cheguei a conhece-lo um pouco:
“Quem vai chorar pelo poeta preto, pobre e tido como louco?”