Amores na prateleira

Amores na prateleira

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O que fazer com o amor que fica guardado, sem rótulo e sem destinatário? É quase como uma coleção de sentimentos empoeirados, acumulados em caixas invisíveis com uma plaquinha imaginária: “Proibido mexer”. Não é para ninguém tocar. E, na dúvida, melhor nem abrir — vai que escapa um pedaço mal resolvido que só sirva para lembrar que, sim, ainda dá pra sentir. E sentir, convenhamos, dá trabalho.

Ryane Leão já disse: “meu amor é porta entreaberta, só entra quem eu deixo”. Uma frase linda, forte, mas… e quando a porta entreaberta é só de enfeite? Porque, sejamos sinceros, a maioria das portas por aí já não se abre por qualquer coisa. Antes de dar um passo sequer, fazemos um inventário completo: será que vale? Será que vou perder tempo? O medo de amar errado vira guia, e a coragem de simplesmente amar vai ficando lá atrás, juntando pó.

O curioso é que a gente vira especialista em criar desculpas, sempre em nome da proteção. Só que tanta proteção acaba parecendo mais um labirinto do que um abrigo. O meu amigo e poeta incrível Zack Magiezi já resumiu bem: “eu só quero amor, mas não precisa ser perfeito”. Bonito, né? Mas será que a gente consegue viver isso na prática, sem checklist, sem filtro, sem exigir perfeição?

A verdade é que, na ânsia de evitar erros, acumulamos “quase amores”. Ficam ali, parados, como uma reserva de emergência, esperando o momento ideal que nunca chega. E é um ciclo: portas entreabertas que não convidam ninguém, gestos guardados que nunca saem da gaveta. Tudo isso embalado pela desculpa de que é melhor prevenir do que se arrepender. No fundo, talvez seja medo de descobrir que amar é menos sobre planejar e mais sobre aceitar o risco.

E assim seguimos: colecionando sentimentos que poderiam ter sido, acumulando vazios em prateleiras emocionais. Porque o amor que não se vive apodrece com o tempo. E, embora seja fácil dizer que é prudência, que é medo de gastar energia à toa, a verdade é que só estamos adiando o inevitável. O que não é vivido não vira história, e as portas entreabertas, no fim das contas, talvez nunca tenham estado realmente abertas.

Às vezes, penso que o problema não está na porta ou no amor guardado, mas na gente mesmo. Talvez a questão seja que não sabemos lidar com o risco, com o inesperado, com a possibilidade de não controlar o resultado. Criamos regras, planos e métricas para o amor, como se ele fosse uma planilha bem organizada. Mas amor não é Excel. Ele é aquele arquivo desorganizado que, de vez em quando, some do desktop e deixa a gente sem saber o que fazer.

E nessa tentativa de organizar o incontrolável, acabamos nos isolando. Olhamos para o outro com lentes de aumento, procurando defeitos antes mesmo de enxergar as qualidades. A verdade é que nunca vamos achar o “amor certo” se ficamos parados na porta, esperando que ele preencha todos os requisitos de um formulário imaginário. Quem ama de verdade sabe que amar é pular sem saber a altura da queda, é tropeçar e, às vezes, se ralar feio.

Mas a vida não espera. O estoque de amores guardados pode parecer confortável agora, mas a validade emocional é curta. O que está guardado se perde, não pela falta de entrega, mas pelo peso de tudo o que poderia ter sido e não foi. No fim, só temos uma escolha: arriscar, abrir a porta, deixar que a bagunça entre e se instale. Porque, por mais assustador que seja, o amor só acontece quando a gente para de colecionar desculpas e começa a colecionar histórias.

Carla Nogueira

Carla Nogueira

Carla Nogueira, ou simplesmente Carlota, é produtora Cultural formada em Gestão de Pessoas e possui MBA em Gestão Humanística de Pessoas. Multicriativa por natureza, é fundadora do Estúdio Carlota, idealizadora do Festival Manifesta e outros muitos projetos, todos eles dedicados a impulsionar a arte, a cultura, criando conexões que transformam criatividade em potência. Notívaga assumida, amante de cervejas e mestre no sarcasmo, escreve crônicas afiadas sobre as ironias e peculiaridades do cotidiano.

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2 Comments

  • Diego

    So verdade.
    Essas travas em frente as portas fazem parte também das raízes que vamos criando com a vivência e as experiências ao longo da nossa trajetória. Não existe manual para viver.
    O difícil é aceitar e perceber que não é só sobre passar pela porta, mas sim saber o nosso próprio limite para dar o próximo passo.

  • Anne

    Arrasou mais uma vez! Ponto!

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