Saudações, cervejeiros!
Sabemos que a maquiagem é uma das armas de sedução das mulheres, e hoje, a coluna vai fazer um paralelo com algumas artimanhas semelhantes utilizadas nas cervejas com tal propósito.
(Bem como muitas outras artimanhas são utilizadas, também, como a inteligência, a perspicácia e a beleza – sim, para citar Vinicius de Morais: “Que me perdoem as feias, mas beleza é fundamental!”).
Outrossim, o foco da nossa conversa de hoje é justamente a “maquiagem” em termos cervejeiros, traduzindo, como alguns adjuntos podem ser acrescentados às cervejas para trazer uma experiência que melhor conquiste ao público.
Não direi que maquiagem cervejeira é uma “enganação”, mas, podemos dizer que ela é, minimamente, um dolus bonus (o exagero cometido pelo vendedor ao valorizar o objeto a ser alienado, sendo admissível tais manifestações exageradas, pois um mínimo de diligência pode dissipá-las). Todavia, é um tópico cabível a todos aqueles que se interessam pelo mundo das cervejas artesanais, conhecer os elementos que maquiam a cerveja.
Toda maquiagem é uma forma de “pintura”, acredito que os fashionistas de plantão pode vir a discordar de mim, mas, em último plano, uma maquiagem não difere de uma forma diversa de pintar a realidade. Temos que inserir a pintura da realidade com outros tons como uma forma de arte, eu jamais me furtaria a tal designação, tampouco seria um purista conservador em tal aspecto.
As possibilidades de como se confeccionar uma cerveja artesanal são muitas, não sou um purista, tampouco me apego ao saudosismo chauvinista reinheitsgebotiano que brada pelo “puro malte” (leia mais aqui: https://papocultura.com.br/puro-malte-sinonimo-de-qualidade/). O mundo das artesanais é justamente aquele que preza pela expansão de aromas e sabores, desbravando texturas e nuances das cervejas.
A assertiva anterior é importante para que seja demarcada a fundamentação de que o texto em apreço não é contrário à evolução cervejeira, tampouco prima por um obscurantismo retrógrado para tanto. Minha indagação apenas reside em um ponto singelo: até qual ponto a maquiagem (adjuntos) podem vir a descaracterizar uma cerveja? É justamente sobre esses aspectos que viremos a conversar no artigo em desenvolvimento hoje.
Aveia
Seguindo o preceito minimalista (de 1516) que cerveja é água, malte e lúpulo (e levedura, para fermentar), qualquer outro componente adicionado ao caldo é tido como adjunto. Nessa seção, vamos falar da aveia, um dos adjuntos mais utilizados atualmente na produção de cervejas artesanais.
Já tive uma ligeira diatribe com um “pseudo-çommeliante” metido a “doutor adevogado” (talvez caiba um “habeas corpus para dirimir a celeuma, Excelência!”) sobre o tema, na qual ele afirmava incessante e erroneamente que a aveia seria capaz de conferir “picância” ou um “sabor diferenciado” à cerveja, quando usada como adjunto.
A verdade é que a aveia teleologicamente (ou seja, com tal finalidade) é utilizada para conferir maior retenção de espuma e também para conferir uma sensação aveludada ao corpo da cerveja. Outrossim, a aveia tem o propósito estético, de dar mais espuma, com uma retenção mais firme e uniforme ao líquido, e, semelhantemente, uma proposição gustativa de dar um volume maior ao corpo da cerveja.
Em nenhum dos dois casos relatados é conferido um “sabor” específico, já que o primeiro critério é visual e o segundo é uma questão de proporcionalidade entre o peso e o espaço ocupado pela cerveja ao ser degustada. Por causa de um percentual maior de proteínas, quando comparada com a cevada, a aveia é um bom adjunto para melhorar a cerveja em termos qualitativos, principalmente no que tange ao médio peso molecular de suas partículas, o qual é fundamental para qualidade da espuma e corpo da cerveja.
A alta concentração de proteica advinda da aveia (ou dos flocos de aveia, tecnicamente falando) também contribui para a turbidez da cerveja. Esse aspecto pode ser algo perseguido em sua produção, principalmente quando se trata do estilo New England IPA (NEIPA), no qual um corpo aveludado, juicy (estilo “sucão”) e hazy (nebuloso numa tradução direta, mas que quer dizer: turvo) é algo bastante apreciado.
Por mais que o expediente da adição da aveia seja recorrente, a questão da qualidade da retenção da espuma na cerveja pode ser atingida sem o uso do mencionado adjunto. Pode-se valer de duas outras maneiras para tal: por meio dos alfa-ácidos, e da carbonatação.
Os alfa-ácidos ácidos contidos no lúpulo são capazes de influenciar no modo como a espuma é formada e também retida na cerveja. Nesse passo, cervejas mais lupuladas tendem a ter uma espuma qualitativamente mais perene. Semelhantemente, quanto mais carbonatada, mais espuma a cerveja formará. Ou seja, quanto mais gás carbônico dissolvido numa cerveja, maior será a espuma formada.
Derradeiramente, percebe-se que, nem sempre, é necessário recorrer ao adjunto (aveia) para se lograr êxito naquilo que se almeja (mais espuma e mais retenção), havendo algumas alternativas sem que se recorra a maquiar a cerveja.
Lactose
Não se pode dizer que a adição de lactose é uma “modinha”, já que seu uso remonta à criação do estilo Milk Stout. Pode-se, no entanto, dizer que é modinha o uso da lactose em estilos diversos, como, por exemplo, nas “Cream IPA’s ou Milkshake IPA’s” (IPA’s com adição de lactose) ou nas Pastries Stouts, que não são bem uma evolução direta das Milk Stouts.
Inicialmente, cumpre ressaltar que a lactose é um alérgeno (um produto capaz de causar alergias ou intolerâncias alimentares), e deve ser sempre ressaltada como ingrediente integrante da receita, sob pena de causar um choque anafilático à quem é sensível ao componente. Ademais, estruturalmente, a lactose é um açúcar de leite complexo. Ela está presente no leite dos mamíferos e particularmente no mais consumido, no leite de vaca. Em termos químicos, seu potencial adoçante (0,16) é baixo quando comparado à sacarose (1) ou glicose (0,75).
Assim, por causa de suas propriedades químicas, podemos dizer que a lactose é um açúcar de baixo potencial adoçante e não fermentável, já que as leveduras comumente utilizadas nos processos cervejeiros são incapazes de decompô-la em açúcares menores.
O resultado prático dessas propriedades é que a cerveja que usa lactose tende a ser infimamente mais doce que uma que não usa, mas, em compensação, tende a ter uma densidade maior, ou seja, uma sensação de preenchimento na boca (comumente denominada de Mouth Feel) muito maior. Tendo um corpo maior, a percepção de que a boca é mais bem preenchida pela cerveja é bem mais notória, e é isso que a lactose acaba transmitindo à cerveja.
É comum se apontar que o uso desmedido da lactose (ou sem muito parâmetro, apenas pelo hype – leia mais sobre ele aqui https://papocultura.com.br/hype-cervejeiro-o-que-e/ ) acaba por tornar as cervejas um tanto quanto enjoativas.
É comum o uso de lactose em um subestilo de IPA denominado de Milkshake IPA, um estilo que tenta emular a bebida batida com leite (batido). No entanto, se a premissa básica da IPA é ter um amargor facilmente identificável, qual seria o fundamento para deixá-la doce, com um corpo volumoso e um tanto quanto enjoativa?
O mesmo questionamento pode ser feito às Pastries que usam a lactose para a mesma finalidade, inflando-as e deixando-as mais doces do que efetivamente são. Isso faz com que suas características mais elementares, como torra alta e amargor elevado, sejam postas em segundo plano pelo uso do referido adjunto.
À primeira vista, o uso da lactose como adjunto parece ter vindo para dar uma evolução ao corpo e à percepção de dulçor nas cervejas. Todavia, em uma análise mais detida, é possível notar que o uso do mencionado adjunto faz com que todas as cervejas acabem ficando parecidas umas com as outras, e que o resultado final seja um tanto quanto enjoativo e repetitivo. Ou seja, o que outrora era criatividade, passa a ser um padrão (enjoativo e sem grandes inovações).
Maltodextrina
Dos adjuntos mencionados, a maltodextrina é a mais nova vedete dos cervejeiros alvissareiros! É um hidrocarboneto de cadeia longa, resultado da hidrólise do amido de milho. Ela não é fermentável, e por causa disso, costuma ser usada para aumentar o corpo da cerveja sem deixar residual adocicado.
Tanto quanto os demais adjuntos já abordados, a maltodextrina é utilizada com o escopo cervejeiro de incrementar o corpo do resultado final. Em termos populares, ela é utilizada para “engrossar o caldo”, isto é, dar um boost no corpo da cerveja. Similarmente, é até engraçado rememorar que a maltodextrina sempre foi muito utilizada pelos praticantes de musculação, com a finalidade de ganho de massa muscular magra ou para ficar “bombado”.
Esse é mais ou menos o mesmo efeito que a maltodextrina é capaz de conferir às cervejas nas quais ela é utilizada, ela acaba por “bombar” o corpo da cerveja, deixando-a bastante “anabolizada” por assim dizer. A maltodextrina consegue fazer com que a espuma tenha uma profusão muito maior e faz com que sua retenção seja mais prologada. Além disso, o corpo fica tão ou mais volumoso do que quando se usa lactose para essa mesma finalidade. Não raramente, os cervejeiros costumam combinar os dois adjuntos: lactose e maltodextrina para um corpo ainda mais “musculoso” na cerveja.
O problema que pode ser indicado pelo uso da maltodextrina na cerveja é um tanto quanto semelhante ao resultado obtido pela lactose. Todavia, se na lactose o vocábulo correto para descrevê-la é “enjoativa”, no caso da maltodextrina, a melhor forma de representá-la é denominando-a como sendo “artificial”.
O atributo da “artificialidade” é a melhor forma de contar em detalhes como uma cerveja fica quando ela é utilizada. Sem a aplicação da maltodextrina o corpo que se atinge em uma cerveja jamais será tão alto ou tão espesso em termos de densidade. Somente com o uso desse adjunto (e, por vezes em conjunto com os demais já citados) é que se conseguem resultados absurdamente expressivos: cervejas com um corpo altíssimo, uma densidade deveras alta e com muito preenchimento do Mouth Feel. Por mais que essa seja uma sanha cervejeira atual, o resultado é obtido com o custo da artificialidade.
Saideira
A combinação estonteante de lactose com maltodextrina comumente leva a uma sensação na boca bem inusitada, parece até que a pessoa mastigou chia, e ela inchou. Sensação semelhante se tem ao provar uma cerveja com esses dois elementos maquiadores, o corpo da cerveja é tão anabolizado e opulento que parece que infla na boca de uma maneira nada natural.
Para sintetizar, há de se dizer que existem muitos outros adjuntos não mencionados hoje, como o trigo, o centeio, o xarope de milho, dentre outros. O objetivo do texto não era esgotar todos os adjuntos possíveis. Apenas se quis demonstrar como se é feito o uso dos adjuntos atualmente mais utilizados e quais os resultados obtidos, os quais constantemente flertam com um caráter enjoativo e/ou artificial.
Mutatis mutandis, às vezes, uma mera maquiagem pode parecer um verdadeiro implante de silicone…
Música para degustação
A recomendação musical de hoje é relativamente abstrata com a música: Судно (Борис Рижий); da banda de Synthwave bielorrussa Молчат Дома. Судно, transliterado como “Sudno”, é uma palavra que significa “vaso esmaltado” no idioma eslavo.
Pensemos na cerveja como sendo o vaso, e os adjuntos como sendo o esmalte… e uau!
Fez-se a conexão!
Saúde!
FOTO: publicada em Recanto Inspiração
3 Comments
[…] artigo anterior seja requerido. No entanto, no caso do texto de hoje, a leitura do texto anterior (CLIQUE AQUI para saber qual foi) é altamente recomendada. O requisito da necessidade da leitura anterior se […]
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Excelente explanação.