10 dicas preciosas pra você se assumir

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SPOILER: Tudo baseado apenas em minha experiência pessoal

Por incrível que pareça, se assumir gay ainda é um processo delicado, cheio de incertezas e medo, que tira o sono de muita gente por aí. Mas claro, né? Nem todo mundo nasceu rodeado de pessoas compreensivas, estudadas, desconstruídas. Nem todo mundo pode contar com o apoio de familiares e amigos. Nem todo mundo pode fazer o que quer da própria vida.

(Parêntese importante: todo mundo deveria fazer o que quer da própria vida, é um direito inafiançável. Mas a realidade é um pouco mais dura que os conceitos, e infelizmente ainda tem muita gente por aí que depende financeiramente de pais homofóbicos, por exemplo, ou esconde a própria sexualidade por questões de segurança.)

A boa notícia é que as coisas melhoraram bastante nos últimos anos. Apesar de o Brasil ainda ser o país que mais mata transexuais no mundo, a representatividade na mídia melhorou (mesmo ainda não sendo ideal), as redes sociais deram voz aos oprimidos e muita coisa deixou de ser tabu.

Esses fatores facilitaram bastante as coisas pra quem finalmente quer sair do armário. E como vivi essa experiência há uns anos e coletei muitos aprendizados sobre ela, decidi compartilhar com vocês alguns conselhos.

Só frisando: é tudo única e exclusivamente baseado na minha experiência pessoal — acrescentando aí todos os privilégios sociais que tive ao longo da minha vida. Digo isso pra ninguém encarar esse texto como regras de um outing bem-sucedido, ok? O que escrevo abaixo são apenas dicas de quem já passou pelo processo e acha que acertou.

Vamo lá?

1. Primeiramente, se pergunte: por que?

Há várias razões pra querer se assumir. Acho que a principal é a paz de espírito. Aqui fora do armário a gente respira melhor, vê a luz do sol, se diverte mais — tem tanta coisa legal pra fazer aqui fora. Mas muita gente não atenta para um fato importante: a única razão coerente para querer entrar no processo de se assumir é a vontade de estar bem consigo mesmo.

Conheço muita gente que sofre pressões do namorado ou da namorada, e às vezes até mesmo de amigos. O conselho que dou é: entenda essas pressões como conselhos de pessoas que amam você (escute com paciência e humildade, pondere com discernimento, jamais se chateie), mas só inicie o processo quando você se sentir 100% motivado por você mesmo.

Explico: se assumir é entrar num processo irreversível de autodescoberta e autoaceitação — tal qual uma terapia, esse processo funciona muito melhor quando você entra nele porque quer.

2. Fale a respeito, e fale bem muito.

A solidão dentro do armário é cruel. Desejos reprimidos, vontades solapadas, oportunidades perdidas. É tão solitário dentro do armário que às vezes fica impossível entender o que está acontecendo de verdade.

Um bom passo para começar a abrir a porta é conversar a respeito. Quando você verbaliza o que está sentindo, acontece um milagre que chamo de autoesclarecimento: só o fato de elaborar uma frase já faz você compreender melhor o tema.

Quando você fala sobre si mesmo, você se entende melhor. E se assumir nada mais é que se entender.

Procure amigos próximos ou familiares de confiança e se abra. Conte tudo. Diga o que está sentindo. Se não veio ninguém à sua cabeça, busque um terapeuta. Terapia é excelente nessas horas.

Se a situação não está para investimentos, se é que me entende, busque ONGs ou instituições que trabalham com a causa LGBT. Muitas delas prestam serviços de acompanhamento psicológico gratuito e até mesmo serviço social, se a situação envolver violência doméstica.

E sempre tem a internet, né? Há centenas de comunidades na web dedicadas à causa LGBT, onde você encontrará muitos iguais que podem ajudar. O importante é não guardar só para você as coisas que você está sentindo.

3. Experimente para se entender.

Dar a cara à tapa. É isso. Não se reprima, não deixe de fazer o que seus impulsos indicam. Se você tiver responsabilidade com os outros, só vai ser benéfico experimentar. Testar. Se aventurar.

Ah, você está num relacionamento heteronormativo? A saída mais honrosa é acabar esse relacionamento antes de sair por aí beijando outras bocas, mas a gente sabe que nem tudo é simples assim, né? Tem gente que é casada, que tem filhos, enfim, que tem uma vida um pouco mais complexa que os manuais de autoajuda. Nesses casos, experimentar vai dar a você a coragem para seguir em frente.

Não estou incitando você a ser desonesto com os outros, longe disso, estou apenas dizendo que esta é uma situação em que você deve decidir: ser honesto com os outros ou consigo mesmo?

Coloque-se em primeiro lugar, pense em você e siga em frente. Quando você é honesto consigo mesmo passa a ser uma questão de tempo a honestidade com todos os outros.

4. Vão julgar sim, mas e daí?

Quem nunca foi julgado, pelo amor de Deus? No meu processo, encontrei pessoas que não compreenderam meu caminho e decidiram se afastar — isso me magoou, mas com o tempo compreendi que eram pessoas que já estavam condenadas a sair da minha vida algum dia, por esse motivo ou por qualquer outro.

Se alguém não consegue aceitar quem você é, sinceramente, essa pessoa não merece você em nenhum nível.

Malas sempre haverão, mas olha só: eu me surpreendi mais positivamente do que negativamente em meu processo. Muitos amigos e familiares demonstraram um nível de entendimento e maturidade que eu nunca desconfiara que teriam, e a relação com essas pessoas passou a ser muito mais profunda e sincera depois que iniciei o processo.

Elas me ajudaram a descobrir meu papel no mundo e me deram força em momentos importantíssimos do meu caminho.

Vivi momentos incríveis com essas pessoas — como, por exemplo, quando contei para uma grande amiga que eu era gay e isso acabou se tornando uma história clássica.

A gente foi jantar e eu anunciei em tom solene, “Olha, tenho uma coisa pra contar… eu sou gay”. E ela, respirando com um alívio indescritível, quase bufando, segurou minha mão e disse, “Não, querido, eu que queria te contar isso… e faz tempo!”

O resumo da ópera é: você sobrevive a quem te julgar justamente porque vai ter muito mais gente ao seu lado defendendo você.

5. Não se preocupe com rótulos.

Meu outing mal começou e já me trouxe uma questão existencialista séria: quem sou eu na fila da buatchy? Eu não me identificava com os rótulos que a cena gay tinha na época, eu não gostava das músicas que tocavam nas baladas gays e eu não estava disposto a modificar meu estilo de vida para ser gay. Eu só gostava de meninos e ponto — todo o resto podia seguir inalterado.

Nessa tentativa de ser alguém, fritei algumas madrugadas sacolejando ao som dos clássicos de Gala (meu Deus, como sou velho!), usei roupas de gosto duvidável e me enrosquei todo diante da liberdade que o mundo gay me proporcionava — até perceber que o que eu gostava mesmo era de ficar louco ouvindo Pearl Jam até de manhã com meus amigos.

Demorou, mas compreendi que estava apenas tentando me encaixar em um rótulo — e rótulos não têm utilidade alguma quando o que realmente importa é o conteúdo.

Você não precisa ser A LÔKA DA TURMA, a não ser que você queira; você não precisa ser O GAY PADRÃOZINHO HETERONORMATIVO, a não ser que você queira; você não precisa ser uma LESBIAN CHIC PADRÃO GLOBO QUE SÓ FICA COM CAMINHONEIRAS, a não ser que você queira. A liberdade é uma abstração fascinante e assustadora— e, por causa disso, procuramos logo um rótulo que nos dê um norte, que nos aponte um caminho confortável dentro de tantas novas possibilidades.

Entendendo isso, você vai compreender que não precisa ser outra pessoa para se assumir — basta que você seja você mesmo que tudo vai dar certo. Eu, por exemplo, até hoje não sei o que danado é desacuenda — mas tô aqui, sobrevivendo como posso.

6. Fuja de quem é discreto e fora do meio.

A gente imagina que no mundo gay não tem preconceito, mas tem sim. A coisa mais comum do mundo é ver rapazes que ainda não iniciaram o seu processo exigindo pessoas no mesmo estágio para se relacionar (são os “sigilosos”, homens que ainda não se sentem confortáveis em se assumir e por isso buscam homens que não saíram do armário ainda).

Se você está querendo mesmo ver como é aqui fora desse mobiliário claustrofóbico, dê um tempo nos sigilosos. Não tenho nada contra, mas é inegável que eles atrapalharão seu processo.

Sigilosos reforçam rótulos contra os quais você deve lutar dentro do seu processo de escancarar a porta — a maioria tem um comportamento contraditoriamente homofóbico, emitem opiniões desastrosas e tratam a relação homossexual como um pecado mortal que deve estar sempre escondido dos olhos da sociedade.

Não preciso nem dizer que não é disso que você precisa, né? Busque a companhia de gays bem resolvidos que possam servir de inspiração para o seu processo e fuja de quem ainda é cheio de neuras acerca da própria sexualidade.

Estar com pessoas que se sentem bem na própria pele, quer seja no sexo casual, quer seja numa relação duradoura, vai dar a você uma nova perspectiva do que é ser gay — uma perspectiva otimista, inspiradora e encorajadora.

7. Perdoe seus pais.

Ah, os pais. Essas pessoas que fazem tudo por nós e querem apenas uma coisa: que a gente seja como eles querem. Só isso. Por mais desconstruídos que seus pais sejam, sempre rola um período delicado — aquele período em que você está numa transição e não sabe direito se é gay, bi, trans, árvore, pingente de tungstênio ou mensageiro dos ventos de bambu.

É comum rolar um afastamento dos pais nesse período, mas saiba que faz parte do seu processo de se assumir buscar um entendimento maior de quem são seus pais, por que eles agem como agem e como perdoá-los por tudo.

Obviamente estou aqui falando de casos que não descambam para a tortura psicológica ou para a violência física — nesses casos você tem que buscar ajuda profissional, quer seja um terapeuta, um assistente social ou um policial mesmo.

Mas se seus pais não votam em Bolsonaro e mesmo assim estão com dificuldades em compreender sua nova vida, dedique tempo, paciência e compreensão a eles.

Entenda que eles vieram de outra geração e o mundo era bem mais cruel com gays do que é hoje em dia — muitas vezes eles estão apenas preocupados com os percalços que você encontrará em seu caminho, caminho este que eles não percorreram e não fazem ideia de como é.

Perdoar os pais é restabelecer uma forte conexão com quem você realmente é. E já que o processo é sobre autodescoberta e autoaceitação, essa etapa é essencial.

8. Assuma-se no trabalho, but be careful.

Lá vem um trecho bem delicado. Não vou cagar regra aqui, tá? Faça o que quiser. Só vou contar a minha experiência.

Eu não gosto que minha vida seja pauta do cafezinho da firma — sempre tive treta com a rádio-corredor das empresas. Por isso quando decidi me assumir, fiz uma varredura em meu trabalho para identificar as pessoas para as quais eu me abriria.

Com o tempo, e com a maturidade, fiz dessa verdade algo muito natural de ser dito: todo mundo no meu trabalho sabe que sou gay, mas não significa que falo da minha vida íntima pra todo mundo. Sempre achei que se assumir não é a mesma coisa que escancarar suas intimidades — e seguindo essa premissa, coisas como com quem fiquei, com quem dormi, o que fiz na cama, com quantos transei ao mesmo tempo, se havia mesmo um anão ou se foi aquela pílula, enfim, coisas extremamente íntimas não entram em minhas conversas na firma.

Faço isso porque considero detalhes sobre minha vida sexual coisas que dizem respeito apenas ao foro íntimo, e muito embora não faça esforço algum para esconder minha sexualidade (eu passo o dia ouvindo Beyoncé, minha gente!) só costumo falar abertamente sobre ela com os companheiros de trabalho que têm alguma importância na minha vida fora da empresa.

A lição que você deve tirar desse meu relato é a seguinte: o trabalho não é a buatchy. Ou seja, num ambiente corporativo você não deve se comportar como se comportaria num encontro entre amigos. Por mais informal que uma empresa seja, ainda se trata de uma empresa. E manter uma postura profissional só vai fazer bem para sua vida.

9. Redes sociais: um capítulo à parte.

Nas redes sociais, eu sigo a mesma premissa do trabalho: não abro minha vida, não escancaro minhas intimidades, não dou check-in no motel. Mas isso não significa que banco o sigiloso na internet. Eu só não quero que um stalker ensandecido por sua obsessão purulenta use as informações que coleta em meus perfis para traçar um plano diabólico de sequestro seguido de esquartejamento e canibalismo contra minha pessoa (pra vocês terem ideia, em todos esses séculos de Facebook nunca alterei meu status de relacionamento).

Ainda assim, uso bastante minhas redes sociais para falar sobre temas relacionados ao universo gay, e de certa forma deixo clara a minha orientação. Na realidade, acho que as pessoas levam as redes sociais a sério demais — mas as redes sociais, definitivamente, diante de todas as outras questões que levantei aqui, não são uma prioridade.

Não se preocupe com Twitter, Instagram e Facebook, a não ser que você seja uma Pugliesi da vida. Se o vírus da SID (Social Influencer Disease) não te contaminou, então não leve tanto a sério. Encare como uma brincadeira.

Mais uma vez, a liberdade é que dá o tom: se você quer criar um marco no Facebook com a frase “Saí do armário hoje”, faça; se você prefere nem ter foto no perfil pra não dar margem a stalkers, faça. Só tome cuidado com a empolgação.

Como disse antes, a liberdade é fascinante e assustadora. Diante das recompensas enormes de se assumir, muita gente se embebe de autoconfiança e acaba fazendo coisas duvidáveis como postar um vídeo dentro da banheira com cinco garotos nus e um anão (ou terá sido só aquela pílula?).

Como o que cai na internet para sempre estará lá, pense bem antes de abrir sua vida. Mais uma vez, repito: não quero cagar regra. Muitas pessoas precisam dessa autoafirmação para se sentirem melhores, e muitas vezes enfrentar o julgamento público é uma boa forma de adquirir confiança. Só não esqueça: vai estar na internet para sempre. E para sempre é tempo demais.

10. Politize-se.

Você está entrando num mundo novo, cheio de alegrias, com muitas oportunidades. Mas não feche os olhos, ok? Esse mundo também tem problemas sérios que precisam de mobilização, militância e luta para serem resolvidos.

Como disse anteriormente, o Brasil amarga o primeiro lugar em assassinatos de transexuais. Além disso, a cada 26 horas uma pessoa é assassinada no Brasil por motivações homofóbicas. Isso só pra citar os casos mais extremos.

Por isso, tome este post abaixo como o artigo 1º da Constituição da República Federativa das Gay:
Vitor Gomes Pimentel

Ser LGBT+ é sim um ato político. Como está sendo escrever esse texto. Nós, gays, precisamos de representatividade, união e visibilidade para conquistar direitos básicos (como o casamento) até conquistas mais complexas (transformar homofobia em crime inafiançável, por exemplo).

Se você não se interessa por política, não vai saber que neste momento existe uma briga entre entidades religiosas e grupos LGBT+ em Brasília pela aprovação de um projeto de lei que criminaliza a homofobia no Distrito Federal (e que este projeto de lei pode ser o embrião de uma legislação federal sobre o tema). Num rápido resumo:

“Criada há 17 anos, a lei nº 2.615 havia sido regulamentada na última sexta-feira (23/06) pelo governador do DF, Rodrigo Rollemberg. A proposta previa multa de até R$ 10 mil em caso de discriminação por orientação sexual, mas foi revogada três dias depois em votacão na Câmara Distrital do DF.” Leia mais aqui.

Ao mesmo tempo, o famigerado Escola Sem Partido avança no Congresso, com diversos projetos de lei semelhantes em tramitação nas esferas estaduais e municipais de todo o Brasil.

Em linhas gerais, o Movimento Escola Sem Partido pretende excluir da sala de aula (inclusive, prevendo punição aos professores) temas que seus idealizadores julgam como doutrinação ideológica — dentre os quais, a discussão sobre igualdade de gêneros e homofobia, um passo essencial, segundo especialistas, para diminuir o preconceito contra os LGBT+ na sociedade.

Ou seja: não se trata apenas de se assumir. Você agora faz parte de uma camada da sociedade que luta para conquistar direitos que são constantemente negados por grupos conservadores. Neste sentido, você tem deveres com essa comunidade. E se politizar é a melhor forma de ajudar a causa.

Agora jogue tudo que leu na lata do lixo.

Conselhos são aquela faca de dois gumes, né? Quando você dá, já se arrepende. Porque cada realidade é de um jeito e cada um luta sua própria luta.

Espero que todas as dicas que dei aqui sirvam para você se empoderar, erguer a cabeça e adquirir a coragem necessária para ser quem você é.

Seja bem-vindo(a) ao lado de fora do armário. 🌈🌈🌈

Patrício Jr.

Patrício Jr.

Escritor, jornalista, publicitário. Autor dos romances “Lítio” e “Absoluta Urgência do Agora” e da coletânea de contos “A Cega Natureza do Amor”, publicados pela Editora Jovens Escribas.

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