Barril bom não salva cerveja de base ruim

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Saudações, nobres cervejeiros!

Tal como um tema recorrente nos textos aqui do blog, quando se trata de cervejas artesanais, mais uma vez, vamos falar sobre cervejas envelhecidas em barris. O tema de hoje se enquadra no contexto do crescimento e na disseminação desse tipo de produção cervejeira, no aumento de sua oferta e em uma relativa queda de qualidade, quando observamos alguns exemplares.

O título é bastante claro, ainda que algumas cervejarias tentem em nadar contra a corrente da obviedade. Não basta apenas ter um bom barril (isso é, um barril que já conteve, em algum tempo pretérito, uma bebida de qualidade) para envelhecer as cervejas. É necessário que se tenha uma cerveja de base à altura.

Ou seja, é necessário se ter a compatibilidade entre três fatores. Uma boa base, que seja robusta por si só para que depois se possa pensar em envelhecê-la em barris. É necessário, obviamente, ter um bom barril, com um perfil de destilado e de tosta para o serviço. E por fim, o fator síntese entre os outros dois fatores: um estilo base que faça sentido ser envelhecido, e mais ainda, faça sentido após o envelhecimento.

Com base nessa tríade, vamos debater um pouco sobre a questão dos barris, das bases de cervejas artesanais e como que o recrudescimento em sua oferta, por vezes, não se perfaz no compasso de suas criações.

Saúde!

A cerveja de base: ela tem que ser bastante por si

Apesar de ser algo básico e elementar, é mandatório, primordial e indispensável que a cerveja base (que virá a ser envelhecida em barris) seja boa por si mesma. Dito de outra forma, e talvez de modo ainda mais claro, a cerveja que servirá de base tem que ser uma cerveja que possa ser bebida e que seja boa antes mesmo de passar pelo processo de envelhecimento.

A cerveja de base ser bastante por si só é o ponto de partida para qualquer cerveja envelhecida resultante. Outrossim, ela não tem que depender de nenhum outro fatos posterior, como o envelhecimento em barril, para ser boa (ou vir a ser boa).

Assim, ela não pode ter nenhum defeito grave de produção, bem como também tem que estar inserida em um estilo cervejeiro canônico. Isto é, ela tem que ser distinta em sua própria estilística sem nenhuma questão de dúvida. Pertencer a um estilo (claramente distinto) é um ponto chave para que a cerveja resultante do envelhecimento também seja boa, e isso será melhor analisado a seguir.

Então, quando se pugna desde o título do texto que um barril bom não salva uma cerveja ruim, está se dizendo, de uma outra maneira, que a cerveja deve ser inicialmente concebida para que harmonize com o barril que ela preencherá, bem como, ela deve se adequar ao estilo inicialmente pensado.

Dessa maneira, não adianta ter uma cerveja base fora de esquadro no estilo proposto para depois ser envelhecida, é igual enfeitar uma bicicleta com pneu furado, ela jamais vai sequer sair do canto.

Infelizmente, na maioria das vezes, essa parte inicial do processo é atropelada porque a cerveja base sequer é lançada, de forma apartada, da cerveja envelhecida. Eu acho bastante didático quando as cervejarias disponibilizam ambas as cervejas, tanto a de base quanto a envelhecida. O comparativo entre ambas favorece tanto a percepção do envelhecimento bem como facilita analisar se a cerveja de base é boa por si só, e o barril não carrega o conjunto nas costas.

Um bom barril (pode ser arruinado por uma Base Ruim)

Eis mais uma verdade difícil de aceitar, principalmente para quem é um entusiasta desmedido das cervejas envelhecidas em barris. Um bom barril pode ser “arruinado”.

Na verdade, o que é arruinado é o resultado do conjunto do envelhecimento em barril. Não o objeto físico chamado de “barril”. Afinal, na maioria dos casos, ele servirá para ser utilizado em outras cervejas, nem que seja para fazer as famigeradas “wild ales”, quiçá as “dark sours” canastronas de hoje em dia.

Da mesma forma que um bom barril não salva uma cerveja de base que não seja minimamente boa, a cerveja de base ruim acaba por desvirtuar totalmente o aformoseamento que o barril é capaz de conferir ao conjunto. Uma base desequilibrada em acidez, em dulçor ou em corpo, faz com que o barril se torne inerte ou até mesmo um vilão.

Ele pode não contribuir de maneira a melhorar o conjunto cervejeiro e também pode vir a piorar elementos destoantes já contidos previamente na cerveja de base. Assim, o que já não era bom desde o início pode piorar bastante, beirando até as raias do imprestável. Tudo porque uma boa base não foi gestada a princípio de conversa.

A combinação do estilo da base com o seu estilo resultante pós-envelhecimento

Primeiramente, há de se ter em relevo que não há necessariamente um resultado pré-definido entre o estilo que entra no barril e aquele que sairá após o envelhecimento. O mais comum é que o estilo final seja diverso e não o mesmo.

Exemplificativamente, caso se envelheça uma IPA em barris, o conjunto resultante jamais será uma IPA. Isso ocorre porque o próprio processo de envelhecimento será responsável por uma significativa oxidação dos lúpulos, retirando o caráter essencial de uma IPA que é ser lupulada. Muito provavelmente, no caso citado, haverá uma Old Ale resultante, ou, menos provável, uma Barrel Aged Barley Wine.

Mas, claro, se tudo der errado você pode chamar de wild ale. Se tudo der terrivelmente errado você pode chamar de dark sour.

O exemplo dado serve apenas para ilustrar como é importante ter em mente qual estilo foi utilizado para fazer uma base, e quais podem ser resultantes do envelhecimento empregado. Obviamente que, se o estilo inicialmente pensado sequer puder ser alcançado na base, a chance de se ter um desastre ainda maior após o envelhecimento é flagrantemente maior.

Cada vez mais se nota que cervejas erroneamente denominadas de um estilo (em sua base) são envelhecidas e posteriormente continuam com um grave problema de adequação. Isso fica ainda mais acentuado quando se tem a falsa premissa de que um bom barril vai salvar um estilo ruim na base. A verdade nua e crua é que não vai.

As chances de o estilo resultante ser pior ainda são muitas. Até porque o processo de envelhecimento é como uma gestação, pequenos detalhes podem levar tudo a ser perdido, e de uma maneira deveras trágica. Os resultados indesejados não mudam apenas o estilo de base, fazem com que tudo seja muito mal feito e organizado.

Já que, definitivamente, um bom barril não é capaz de salvar uma base ruim. Por melhor que ele seja, não se trata de um artefato cervejeiro mágico.

Saideira

Particularmente, eu sou um grande entusiasta das cervejas envelhecidas em barris. Contudo, a proliferação na oferta atual desses tipos de cerveja acaba levando a uma disseminação um tanto quanto estranha, seja de ideias quanto de conjuntos cervejeiros.

A ideia que um barril bom pode salvar uma base ruim é um dos exemplos no campo imagético. Não, um bom barril não tem essa capacidade de transformação mágica, ao ponto de transmutar uma base problemática em um ótimo conjunto final.

No campo da produtividade, o que se percebe é que muitas cervejarias aceleram a produção para lançar o máximo possível de novos rótulos de cervejas envelhecidas em barris, sem, no entanto, ter os devidos cuidados. Acabam produzindo cervejas envelhecidas sem atentar em, primeiramente, desenvolver uma boa cerveja no estilo de base para depois se aventurar nessa nova seara.

Dessa forma, atropelam as etapas e acabam por lançar “qualquer coisa”, apenas para poder competir com outras cervejarias que também estão lançando o mesmo tipo de cervejas ou cervejas semelhantes igualmente envelhecidas.

Recomendação Musical

Confesso que uma das bandas mais impactantes da adolescência de quem viu o auge da MTV Brasil foi o Evanescence. Sua principal canção, e a primeira a explodir na programação do citado canal foi justamente Bring Me To Life (a qual recomendo no final do texto).

A canção em destaque me veio à mente ao escrever o texto, justamente, porque ela em seu refrão diz repetidamente “save me”, muito embora, um barril (bom) jamais possa salvar uma base cervejeira ruim, fica a dica.

Saúde

 

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

Sigam-me no Untappd (https://untappd.com/user/Ericksen) para mais avaliações cervejeiras sinceras, sem jabá (todavia, se for dado, eu só não bebo veneno).

A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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