ENTREVISTA – Mar Becker: “Filosofia e poesia comungam mesma paixão pela palavra”

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Nesta série de quatro entrevistas, o escritor Theo G. Alves conversa com personalidades envolvidas com o universo literário em diversos papeis para trazer, além de pessoas interessantes, a palavra de quem está intimamente ligado ao mundo dos livros e da palavra.

A cada semana um nove nome trará suas impressões a respeito da literatura brasileira, sejam escritores, poetas, professores ou editores.

A segunda convidada é a poeta Mar Becker, autora do belíssimo “A Mulher Submersa”, livro premiado e que esteve entre os finalistas do importante Prêmio Jabuti.

Quem é Mar Becker:

Mar Becker nasceu em Passo Fundo (RS) e atualmente mora em São Paulo (SP). Publicou “A Mulher Submersa”, seu primeiro livro (poesia), em maio de 2020, pela Editora Urutau (duas edições, uma no Brasil e outra em Portugal).

Em 2021, “A mulher submersa” recebeu o Prêmio Minuano, concedido pelo estado do Rio Grande do Sul, e foi finalista (segunda fase) do Prêmio Jabuti. Mar é um dos mais celebrados jovens talentos da poesia brasileira.

ENTREVISTA – MAR BECKER

Theo G. Alves: Mar, como teve início sua relação com a palavra e em que momento você se deu conta de que a literatura transcendia em você o seu papel como leitora?

Mar Becker: Comecei a me interessar por literatura na escola mesmo, por conta própria. Tinha uns 13 ou 14 anos, e nesse período conheci Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa, Clarice Lispector… Depois passei a frequentar a biblioteca municipal, e me lembro de uma pequena estante para autores estrangeiros, do que conheci Virginia Woolf, Sylvia Plath, Thomas Mann, Dostoiévski, entre outros.

Não havia ordem nem roteiro prévio; líamos tudo meio misturado – digo, eu e a minha irmã, que me acompanhava nisso.

O desejo de escrever veio por aí, como extensão da leitura. Começou como algo esporádico, e mais tarde veio a ideia de abrir um blog e levar esse exercício de forma regular.

TGA: E, para além das primeiras, quais foram suas leituras mais significativas e como elas ocuparam espaço na sua vida?

MB: Os primeiros poemas que me impactaram, conheci-os num livro didático, na sala de aula de uma escola pública. Foram dois: o “Eu, filho do carbono e do amoníaco (…)”, do Augusto dos Anjos, e o “Tu és o louco da imortal loucura”, do Cruz e Sousa. Essa etapa inicial de leitura foi muito marcada pelo encontro com os clássicos da literatura, e isso nem por escolha minha; era o que havia disponível para retirar na biblioteca.

Em romance, encontrei “A montanha mágica”, do Mann, e fiquei deslumbrada. “Perto do coração selvagem”, da Clarice Lispector, e “Crime e castigo”, do Dostoiévski, foram igualmente importantes.

Aos 22, 23 anos, li com muita entrega a poesia de Sylvia Plath; vieram Sharon Olds e Anne Sexton por essa mesma via. Allen Ginsberg, Kerouac… Teve ainda Herberto Helder, e ele foi uma virada. A partir daí se abriu um mundo, vieram Eugénio de Andrade, Fiama Hasse Pais Brandão, Maria Gabriela Llansol, Luís Miguel Nava, Sophia de Mello Breyner Andresen, Daniel Faria… Helder foi a porta de entrada pra esse encontro duradouro com a poesia feita em Portugal.

Também tive muita sorte de pela internet ter topado com o site “O Poema”, de Vasco Cavalcante. É uma seleção impecável a que ele fez, e me orientou no sentido de descobrir poetas que até hoje tenho de cabeceira. (Obrigada, Vasco!).

TGA: Você tem rituais para a escrita, Mar? Como esse processo acontece no seu dia a dia?

MB: Não sei se são rituais de escrita, acho que ficam mais na periferia do escrever. Manter uma atitude de vigília em relação aos acontecimentos da casa, por exemplo – isso é algo bem meu, e a ideia é tatear nas próprias cenas domésticas um lugar de desdobramento do texto. Aqui me interessam especialmente as miudezas, as ocorrências pequenas dos cômodos, dos corredores; acho que elas dão guarida a um projeto de inacabamento da casa, e esse inacabado se atualiza como estranheza, como não-captura. Os moradores sabem sem saber.

(Numa casa se mora às cegas, sempre.)

Que mais? De uma perspectiva prática, minha atitude é a de tomar nota. Deixo uma aba aberta no notebook e, se vem alguma imagem, algum fragmento de texto, mesmo mínimo, alguma palavra, registro.

Escrevo, reescrevo; de um material se deriva outro, da lepra ou do amor de um texto se ergue outro, e assim por diante. A mim parece um processo em contínuo.

TGA: Você tem uma relação muito próxima com a filosofia, que faz parte diretamente de sua vida acadêmica. Como essa ligação com os textos filosóficos se aproxima da sua literatura?

MB: A filosofia está presente tanto na abordagem temática de um e outro caderno quanto em forma.

O “Caderno das miragens”, por exemplo, toca na questão “passagem do tempo – eternidade”. A seção “Breve ontologia doméstica” brinca com a ideia de uma metafísica dos utensílios do lar (e da dona de casa), descambando num anúncio de insurgência (contra o quê? Não se nomeia). Poderia mencionar outras passagens, mas me alongaria demais…

Quanto à forma, talvez a busca de rigor de linguagem; claro, é uma busca que se quer ao fio de uma febre de imaginação e sensibilidade. De qualquer modo, me parece que, independentemente do caminho que se faça, poesia é sempre trabalho com linguagem, minúcia nesse sentido. A filosofia comunga dessa mesma paixão pela palavra.

TGA: Mar, a perspectiva feminina confere uma densidade essencial em seu livro A Mulher Submersa, o que já foi muito comentado por leitores e críticos. Então, quem são essas mulheres submersas de que seu livro trata e como elas emergiram até ele?

MB: Realmente, é um livro que se debruça sobre “isto” da mulher. Quando falo “isto”, quero me referir a algo de incapturável, que solapa a palavra – por isso digo que é um texto mais escrito na “mulher-em-recusa de”, contorcida, sombrejada; talvez haja um texto no texto, que deveria ser lido numa fiança das coisas que só se perfila à contraluz.

Na dedicatória, descobre-se que “A mulher submersa”, eu a entrego a princípio à irmã, à mãe e à avó, “as três mulheres onde submergi”. Mas elas se camuflam e surgem e se escondem em outros rostos; ou são outras que afinal sobem às faces delas e me olham, por espaços familiares como a casa, de que falei há pouco, e o bairro.

São mulheres em particular e anônimas; são também mulheres-nenhuma, que repelem traços de feição e não se permitem desenhar. Repõem o degredo a todo tempo.

TGA: Quanto aos dias de hoje, que livros e autores mais têm ocupado espaço em suas estantes e leituras?

MB: Perto de mim, autores que considero excelentes e não tive oportunidade de mencionar em outras entrevistas: Isadora Krieger, Léo Tavares, Thomaz Albornoz Neves, Lubi Prates, Natália Agra, Pâmela Filipini.

Alguns dos poucos que vão longe de mim, mas que estão ainda assim absolutamente perto e que tenho lido neste começo de ano: Alejanda Pizarnik, Antonio Gamoneda, Luís Miguel Nava, Clarice Lispector (tenho andado pelos contos), Miriam Reyes, Hilda Hilst.

Passaria o dia elencando nomes, Theo. Difícil.

TGA: E para terminarmos, talvez a mais cruel das perguntas: o que faz você continuar escrevendo?

MB: Não sei te dizer.

Theo Alves

Theo Alves

Theo G. Alves nasceu em dezembro de 1980, em Natal, mas cresceu em Currais Novos e é radicado em Santa Cruz, cidades do interior potiguar. Escritor e fotógrafo, publicou os livros artesanais Loa de Pedra (poesia) e A Casa Miúda (contos), além de ter participado das coletâneas Tamborete (poesia) e Triacanto: Trilogia da Dor e Outras Mazelas. Em 2009 lançou seu Pequeno Manual Prático de Coisas Inúteis (poesia e contos); em 2015, A Máquina de Avessar os Dias (poesia), ambos pela Editora Flor do Sal. Em 2018, através da Editora Moinhos, publicou Doce Azedo Amaro (poesia).

Como fotógrafo, dedica-se em especial à fotografia documental e de rua, tendo participado de exposições que discutiam relações de trabalho e a vida em comunidades das regiões Trairi e Seridó. Também ministra aulas de fotografia digital com aparelhos celulares em projetos de extensão do IFRN, onde é servidor.

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