Leia um dos mais belos diálogos da história do cinema

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Poucas vezes assisti um diálogo tão bonito e filosófico num filme como o travado entre dois personagens do clássico Morte em Veneza (1971), do italiano Lucchino Visconti. O filme é inspirado no original de Thomas Mann. Não é uma adaptação. Há diferenças relevantes de criação, como a transformação do personagem escritor, de Mann, em músico (Gustav Aschenbach), para intencionar a aproximação com o compositor Mahler.

Gustav viaja para Veneza buscando descanso em meio a uma crise existencial. Não encontra a paz procurada. Ele se apaixona por um belo garoto adolescente, Tadzio. A beleza do rapaz ao mesmo tempo atrai e oprime o compositor. Esse fascínio pelo belo, a busca do sublime e do perfeito se contrapõe à epidemia que ataca a cidade, à pobreza que o cerca, a tudo que se afasta dos ideais estéticos. E Gustav sente-se mais incompatível com o mundo, acentuando sua crise.

É dos melhores filmes que já vi. A temática do diálogo magistral a que me referi é a arte, a beleza e a música, em suas subjetividades e segredos. É coisa pra pensar e admirar. E comento apenas desta conversa; de alguns minutos do filme, que é de uma beleza indescritível: a história de um amor intenso sem troca afetiva, se esfacelando ante o mais banal. Acaba por um conto meio trágico, de um tema tão sublime para um resultado tão horrendo.

Confiram o trecho de que falo:

——

Num quarto de hotel…

Gustav – Às vezes penso que os artistas são caçadores que miram no escuro. Nem sabem qual é seu alvo, tampouco se o atingiram. Mas não se pode esperar que a vida ilumine o alvo e estabilize sua mira. A criação da beleza e da pureza é um ato espiritual.

Alfred – Não, Gustav. Não! A beleza pertence aos sentidos. Não é possível alcançar o espírito.

Gustav – Não é possível alcançar o espírito através dos sonhos. Não é possível. É somente através do absoluto controle dos sentidos que se pode, algum dia, alcançar sabedoria, verdade e dignidade humana.

Alfred – Sabedoria? Dignidade? Para que servem? O gênio é uma dádiva divina. Não! Uma aflição divina. Uma chama breve e pecaminosa de dons naturais.

Gustav – Rejeito as virtudes demoníacas da arte.

Alfred – E isso é um erro! É o alimento da genialidade.

Gustav – Sabe, Alfred, a arte é a fonte mais elevada de educação. E o artista tem que ser exemplar. Deve ser um modelo de equilíbrio e força. Ele não pode ser ambíguo.

Alfred – Mas a arte é ambígua. E a música é a mais ambígua de todas as artes. É a ambigüidade transformada em ciência. Espere! (e se dirige ao piano). Ouça este acorde (um tom vibrante) ou então este (tom diminuído, mais fúnebre). Pode interpretá-los como desejar. Temos diante de nós uma série completa de combinações matemáticas, insuspeitadas e inesgotáveis. Um paraíso de duplos sentidos com os quais você, mais do que ninguém diverte-se ruidosa e confortavelmente (toca a introdução de uma música). Consegue ouvir? Reconhece?

Gustav – Pare!

Alfred – É sua! É uma música de sua autoria!

Sérgio Vilar

Sérgio Vilar

Jornalista com alma de boteco ao som de Belchior

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