Cada um tem o cão que merece

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Por Plínio Sanderson

Na caminhada efêmera a cão/vivência sempre esteve entre nós, em existências (intimamente) irmanadas.

aos quatro anos, semi-árido caatingoso, num caicó arcaico, em meu peito a tortura na pele da terra. havia tarzan (pastor alemão), que comia sua galinha e meti a mão… a boca do cachorro abocanha a minha, perfurando a bochecha. o cachorro morreu, de raiva. o médico me desenganou. seu airton dispara para a capital. mais de cem injeções. teimosamente, não preciso dizer que o subscrito escapou. o poeta soteropolitano/potiguar, alberon, decretou: filho do cachorro ensandecido – numa tradução livre. em verdade, desse não lembro, ficaram as marcas, estampadas no rosto e na coxa esquerda.

kalú, pra ser humana só faltava falar. sei, lugar comum em relatos semelhantes. mas, dou fé! morreu estuprada no dia de natal. trepada num aloprado pastor alemão – engatada fatal! isso, lá pelos idos setenta, época do sugismundo, do país avante e pra frente, em pleno e trágico milagre econômico. meu pai enterrou-a no quintal, plantando uma roseira, entoada em cantoria ritualística. bebemos e cantamos. kalú, depois de morta, teimava em aparecer enquanto eu tomava banho. kalú foi a primeira e única alma que presenciei: kaluuuuuuuu, vade…

jumbo, pastor belga (no sentido canino, não luterano), capa preta brilhosa como tapete persa (poema inci-de-um-tal raio do trupizute, bráulio tavares, temente a buceta cabeluda da sua amada), teve uma ferida que evoluiu para gangrena. sacrificado e enterrado no cabaré da zule, em nome da insofismável ordem prostibular. seu airton exigiu, suplicou que todos e todas as meninas (profissionais) presentes chorassem. emocionante, pense num enterro orgasmático.

peter pedro pablo, cão irmão. poodle marrom, não era cachorro de ninguém. morava conosco, habitante da casa. persona invocada, só atendia quando tava a fim, ou, lhe interessava – senhor de si, absoluta altivez. filósofo da chuva. dileto companheiro de empreitadas ensandecidas e inusitadas. quando meus pais zarpavam à dadivosa praia da santa rita, levava-o a todos os lugares – adorava as panquecas da bodeguita de la plaza. lançamos a chapa anárquica ao ca de ciências so(s)ciais, pelas efervescências: sonrisal, não vote, revolte, arrote! untei o pêlo do peter de mel, a exemplo do sid barret (do pink floyd); preguei compridos de sonrizais, de sala em sala, fazendo fita, recitava propostas e proselitismos ufanos, depois, tomava o comprimido em ebulição no copo, e, claro, arrotava estrondoso: a-r-r-o-t-e! e peter, impávido, ator atroz. laureado no 3º festival de poesia da ufrn (86), melhor poesia e melhor performance; ao receber o prêmio, no auditório do nac, de terno completo, com os pedros, o peter e o pereira (como guarda costa, o prêmio de 13 mil dinheiros, é mole?), no preâmbulo, ofereci o prêmio ao muso, peter pedro pablo – companheiro memorável ou honorável?

casei… descasei… casei… filhotes com 22, 20 e 13 anos, num porre louco, adotei o caba maltês prisiaca esculhambado, clayde zé. engatinhando sapens/mente, já terrorista juramentando, precisa apreender alemão para, soturnos, filosofarmos sem fim. agora, o danado, espevitado, cz, determinado em destruir os ready mades expoéticos, roendo revolveres do “assassinaram e métrica” e detonando os “dados poéticos” – sem parar, endoidado, num transe apocalíptico.

imagino a sorte do amigo dunga. saudade criativa do chulepa, misturador de tintas inspirado, que produzia alucinado para a prosperidade, já que a terrinha cascudiana não está preparada para tal revolução pictórica. um dia, tarde ou noite, dunga (e chulepa) serão imortalizados e supervalorizados, em cotação via bolsas de valores, do au-au à wall-street, de hong kong a jucurutu.

assim, a humanidade canina caminha. enquanto, o clayde zé é radicalmente destrutivo, chulepa era inventivo alucinado. mas, declaro que, irremediavelmente, não troco. pois, a criação é antes de tudo, uma práxis destrutiva!

Plínio Sanderson

Plínio Sanderson

Poeta, antropólogo e geógrafo

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