Para Carina Cruz
Vela
Fico perfeitamente
queimando.
A chama aparece na cabeça.
É a razão que assola tudo.
Pacientemente
me abraso.
Dançarino
Me disseram pra lembrar da estética.
É que a beleza faz afugentar a dor
– na China até pouco tempo
calçavam as filhas fêmeas
com sapatos excessivamente apertados
porque bonito era ter pés diminutos.
Não falo de suportar essa dor,
menos ainda se a dor for distribuída
desigualmente entre os gêneros.
O que eu ensaio é ficar segurando
meu pé direito, em ritmo e equilíbrio,
para que alguém me fotografe pois eu
quero estar assim: sumamente belo.
Corvo
Eu sei que posso comigo.
O problema é que o peso a ser
tolerado é massa, inventos,
crises, desvarios e sonhos.
Vocês pensavam que era só massa.
Estas duas mãos que pretendem
cingir o mundo
deveriam ser suficientes.
Vou com fé porque se a respiração
for lenta, o pulso for
manso, o desejo for
perene, é possível revirar tudo
do avesso.
Gato
Retornando ao que fomos, de quatro.
– Eu sou um gato maldito rosnando
do fundo profundo do inferno.
A cada inspiração,
cabeça e pelve empinadas
e você tem que repetir:
– Vou te arranhar, vou te morder.
A cada expiração,
cabeça e pelve retraídas
e você tem que repetir:
– Pode me arranhar, pode me morder.
Torção
Acho que já fui uma toalha molhada
trançada enrolada espiralada
porque sinto que podem passar os anos
as tempestades as crises
e se meu centro estiver intacto
vou permanecer torcido
trançado enrolado espiralado
pra passar feito rocha antiga pelos anos
as tempestades e as crises.
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IMAGEM: The third eye, de Rafael Labro