Esta matéria foi publicada na edição 13 da saudosa Revista Palumbo, impressa em julho de 2011. De lá pra cá pouca coisa mudou no histórico edifício. Mas cabem algumas curiosidades e lamentações: o simpatissíssimo militante político Mery Medeiros e o advogado Raimundo Nonato já se encantaram. E a então criança Bob Marlon, que já aprontava das suas no mundo regueiro, hoje é um artista reconhecido no gênero. Espero que gostem da matéria. É um pouco da história de Natal contida nessas palavras.
No Centro da Cidade está encravado o primeiro prédio de dez andares de Natal. Nele, o cotidiano de vidas comuns: solidões, encantamentos e tudo o que um prédio pode viver sem desmoronar
Durante uma década o edifício 21 de Março foi mirante único do Rio Potengi na ainda boêmia Cidade Alta dos anos 60. O primeiro arranha-céu condominial de Natal reúne, hoje, crônicas urbanas em cada um dos dez andares outrora imponentes. Salas comerciais e residências se dividem em corredores repletos de histórias. Dramas e rotinas abrigados em apartamentos imersos em um dos centros comerciais mais nervosos da cidade.
Cada andar do 21 de Março abriga histórias cotidianas. Em pouco mais de 20 metros quadrados de cada apartamento mora a solidão, vidas apressadas, amores traídos, sonhos e famílias felizes à sua maneira. São vidas urbanas em convívio íntimo com escritórios, ong’s, comércios e clínicas. Comunistas, profissionais liberais, evangélicos e pagãos residem em uma mesma torre homogênea que um dia abrigou a representação da alta sociedade natalense.
O 21 de Março se espreguiça em frente à Praça João Maria – ponto para comerciantes informais durante os turnos matutino e vespertino, e para sem tetos nas noites sombrias do Centro. Ainda comprido aos padrões do bairro ele desdobra o corpo esbelto pela Rua João Pessoa – berço do antigo cantão Grande Ponto, de chãos boêmios e almas errantes, onde convergia a intelectualidade de Natal entre os anos 40 e 70.
O acesso ao 21 de Março se dá pela Vigário Bartolomeu, antiga Rua da Palha – onde viveu, em casa acanhada, tragada pelo progresso, o poeta modernista Jorge Fernandes. Uma placa discreta na entrada do edifício atesta a data de inauguração: 1º de outubro de 1966. E um adendo: “O primeiro edifício de 10 andares construído em Natal, em condomínio”.

O novo prédio foi erguido já no período do adeus à boemia no Centro. Distava apenas um quarteirão da efervescência etílica da cidade: o cruzamento da avenida Rio Branco com a João Pessoa. Foi ali onde os alto-falantes de Luís Romão atraíram natalenses interessados nas notícias da 2ª Guerra. Mas ao fim da lúdica década de 60 o Grande Ponto já não era o mesmo de tantas acontecências. Os limites da cidade já se perdiam ao longe. E o AI-5 ditatorial afastou de vez a alma libertária do lugar.
Nessa época Natal ainda engatinhava no desenvolvimento urbano. Mantinha a aura de província de muros baixos. Os únicos edifícios residenciais construídos eram o Bila (na rua Duque de Caxias, Ribeira) e o São Miguel (na avenida Rio Branco, Centro). Ambos com apenas três pavimentos – quase um sobrado. A primeira experiência da arquitetura moderna para prédios em Natal – com influências de Walter Gropius e Le Corbusier – veio ainda antes, com o Edifício Sede da Repartição de Saneamento, construído em 1938, com dois pavimentos.
O primeiro arranha-céu na cidade não foi o 21 de Março. Em 1955 era inaugurado o prédio do Instituto de Pensão e Aposentadoria dos Servidores do Estado (Ipase – atual Edifício Presidente Café Filho). Ostentava oito andares e o peso do primeiro prédio alto da cidade e mostra da arquitetura moderna propriamente dita. Não era condominial. E a localização de pouco fluxo obscureceu a importância arquitetônica e histórica da edificação, situada na Rua Esplanada Silva Jardim, na Ribeira.
Também de arquitetura moderna, já típica dos anos 60 – fachada limpa, esquadrias de vidro e revestimento de concreto -, o 21 de Março crescia sob o alicerce da incerteza. Era o primeiro arranha-céu destinado a salas comerciais e residenciais. E os primeiros incorporadores temiam o insucesso comercial de um prédio agigantado no Centro da cidade. “Em dois meses todas as salas estavam vendidas”, recorda Francisco das Chagas Fernandes, 65 anos, primeiro comprador das unidades à venda no térreo do edifício.
Francisco é maçom, a exemplo de todos os primeiros incorporadores do prédio. Ele levaria para lá a filial da famosa Relojoaria e Ótica Pérola, com matriz no Alecrim. Na Cidade Alta frequentada pela alta sociedade, receberia clientes mais sofisticados. “Não existia shoppings ou grandes centros comerciais. O movimento era ali”, lembra.
Francisco herdou a loja da mãe, Heloísa Nadir Fernandes, hoje com 90 anos. Chegaram a abrir oito filiais da loja, A Relojoaria foi a primeira e a última a sair do prédio, já em 2000. À época, dividia espaço no térreo do 21 de Março com a agência e depósito de mercadorias da Varig – das mais prestigiadas do país, além da Farmácia Cabral e umas loja de roupas. Todas faliram. “O Centro já não era o mesmo”, lamentou Francisco.
A arquitetura do 21 de Março se mostrou conservadora em pouco tempo. Nada próximo ao modernismo visto anos depois no suntuoso prédio Ducal, seu “primo rico” fincado ao seu lado 12 anos mais tarde. Se nos primeiros anos sobrava estacionamento nos arredores, o inchaço das lojas do Centro e a instalação de secretarias da prefeitura no Ducal provocou o início do caos na Cidade Alta.
O SEGREDO ABERTO DOS MAÇONS
O 21 de Março tem origem na maçonaria. O templo maçônico construído entre 1945 e 1955 funciona hoje como uma espécie de anexo do edifício. Foi edificado na gestão do venerável Mário Villar de Mello, a partir de um terreno doado pelo comendador Ângelo Rossetti, nas primeiras décadas do século passado. Antes do prédio, os maçons se reuniam em Recife. E partiu dessa necessidade de construção de um templo local o surgimento do edifício.
A primeira loja maçônica de Natal se chamava Sigilo Natalense, unificada depois, na data de 21 de março, à Fortaleza União. O terreno foi negociado com incorporadoras na década de 60. Na negociação, os maçons – proprietários do terreno de 375,2m2 – receberam em troca os direitos sobre a parte térrea e o primeiro andar, onde funciona hoje a loja maçônica 21 de Março.
“A viabilidade para construção do prédio se deu pela venda das primeiras lojas do térreo, onde funcionaria um estacionamento. Foi tudo discutido em reunião entre maçons. Por isso, os primeiros compradores foram todos da loja 21 de Março”, recorda Francisco. Os dois engenheiros responsáveis pela obra foram Dirceu Victor de Hollanda e o baiano Malef Vitorio de Carvalho, que chegou a Natal em 1951. O autor do projeto foi o russo Luiz Noya Volfson.
Na lista dos primeiros incorporadores do 21 de Março, depois dos maçons, figura a “nata” da sociedade natalense. Entre eles, os ex-governadores Lavoisier Maia e Cortez Pereira, o jurista Rafael Cabral Fagundes, o médico “milagroso” Vulpiano Cavalcanti e o renomado advogado Raimundo Nonato Fernandes, à época com 48 anos de idade.
93 ANOS DE HISTÓRIA
A relação do advogado e professor aposentado da UFRN Raimundo Nonato Fernandes com o 21 de Março é quase fraternal. Aos 93 anos, cumpre expediente diário na sala 410. Já não advoga ou presta consultoria jurídica. Também não emite parecer ou qualquer atividade relacionada à profissão. A mente nonagenária sinaliza cansaço. Muitas lembranças se perderam. E a comunicação já se faz difícil.
De segunda a sábado ele chega por volta das 9h acompanhado do secretário Davi e do office-boy Wislley, que o ajudam a caminhar até o elevador. Na sala, o advogado coloca uma folha de papel em branco na máquina datilográfica elétrica e tenta transcrever palavras, em francês, de um antigo discurso seu proferido há décadas. É apenas um exercício mental que o distrai por quase três horas. É uma volta imaginária ao trabalho que o fez dos homens mais respeitados no Estado, consultor jurídico em mais de cinco governos.

Raimundo Nonato foi o primeiro a adquirir sala no 21 de Março. Até auxiliou no trabalho de construção. E o fascínio pelo prédio ainda é algo quase indescritível. “Aqui é onde me distraio. Melhor que ficar em casa”, fala com olhar cansado, quase ausente. Na parede do escritório, fotos emolduradas mostram tempos longínquos, quando foi atleta do Morte Futebol Clube, o período de estudante no Atheneu, e ao lado de colegas bacharéis, na faculdade de Recife, em 1944.
Nada disso vem mais à tona nas palavras do advogado. Sempre pensa alguns segundos para responder perguntas, mas insiste em demonstrar raiva por terem retirado seus livros do escritório e depois os guardar na sala ao lado (por conta dos ácaros). Perguntou três vezes se o repórter já viu sua biblioteca. Também se orgulha em ter trabalhado no jornal A República já aos 18 anos. “Lembro de Cascudo. Pessoa amável. Mas ele tinha o trabalho dele e eu o meu”.
Quando elogiado pela forma física ainda altiva, demonstra sorriso discreto, mas cativante. Há cinco anos, o repórter entrevistou Raimundo Nonato e o descreveu nas páginas do Diário de Natal como homem de “aperto de mão firme e gestos comedidos”. Naquela época, aos 88 anos, ainda atendia “antigos clientes” no 21 de Março. E já dizia: “Venho muito aqui para encher o tempo”.
Questionado à época sobre a homenagem com seu nome no Presídio Provisório de Natal, foi enfático: “Isso não honra ninguém”.
A reportagem avisa que vai embora. Acena o adeus àquele personagem do 21 de Março. Ele concorda, em silêncio, e volta a olhar a máquina datilográfica, o papel em branco. E apenas olha, perdido em divagações.
DE MÉDICOS E DE LOUCOS
Raimundo Nonato é um entre dezenas de advogados no 21 de Março. As consultas jurídicas hoje são maioria no edifício antes tomado por consultórios médicos. “Quando foi construído todo médico de Natal queria ter consultório aqui, era sinal de prestígio”, lembra Heriberto Tinoco, que herdou a sala do pai e também dentista e maçom Gilberto Tinoco, e hoje é o único médico no prédio.
Escritórios de contabilidade e de representações comerciais também preenchem boa parte das salas. Mas há um mosaico da cidade impregnado em cada andar. Além do poder jurídico, o legislativo se faz presente com escritório do deputado Fernando Mineiro e do vereador Dickson Nasser. Durante muito tempo funcionaram ali associações e entidades LGBT. Também o chamado Terceiro Setor (ONG’s), além da sede da rede estadual do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP), que há 30 anos ocupa as salas 606 e 607, onde funcionava a Procuradoria Geral do Estado.
“Esse prédio tem relação com os movimentos sociais. Além de ONG’s e entidades relacionadas ao tema abrigados no prédio, na Vigário Bartolomeu, onde foi fundado o América Futebol Clube, morou o desembargador e poeta Joaquim Homem de Siqueira, pai de Esmeraldo Siqueira (escritor e médico) e avô de Juliano Siqueira (militante de esquerda)”, recorda Mery Medeiros, anistiado político, voluntário no CDHMP e autor dos livros ‘Das Evocações e dos Esquecidos’ (1999) e ‘Lições de Democracia e Cidadania’ (2006).
O agitador cultural e coordenador do DCHMP, Aluízio Matias lembra a presença de sindicatos e do jornal Salário Mínimo, editado por Luciano Almeida – subversivo preso pela polícia política durante mais de uma década. “A movimentação cultural do Grupo Aluá também partiu daqui: os mimeógrafos, as passeatas no Dia da Poesia…”, continua Aluízio. Na época das grandes passeatas, as escadarias do edifício funcionaram como escritórios do movimento popular e grevista.

O fotógrafo e diretor da ONG Zoom, Henrique José foi o idealizador da FM Reversão (depois FM Papari), criada no 21 de Março para transmissão das novidades relacionadas às greves do período do impeachment de Collor. A Zoom mantém escritório no edifício e foi responsável por um documentário de 30 minutos sobre a história do 21 de Março, filmado em 2008.
O SOCIALISTA DO 21 DE MARÇO

Mery Medeiros é escritor, pesquisador social e militante histórico do PCdoB. Trabalha e mora no 21 de Março. No apartamento 209 funcionava uma clínica de ginecologia. Ele e a professora aposentada Dorinha adaptaram e residem no pequeno apartamento há seis anos. “Durmo por cima de livro e papel”, brinca. E não passa de brincadeira mesmo. Mery é entusiasta do Centro e do 21 de Março. Deixou uma casa espaçosa no conjunto Santarém, na Zona Norte, para viver feliz no aperto.
“Aqui é próximo de tudo: farmácias, rede bancária, comércio… Tem nosso café diário no Hotel Sol (na rua Heitor Carrilho), ponto de encontro de amigos, e a cultura viva do Centro, cheia de cordelistas, poetas e agentes culturais. Por aqui passam blocos tradicionais do carnaval. Tem o Beco da Lama, o Bardallos, o Bar de Nazaré… Se fosse Recife isso era um corredor cultural. Mas Natal é a cidade do já teve”. E Mery nunca teve muito. É daqueles socialistas convictos – prima mais pelo Ser do que o Ter.
O apartamento ou salas do 21 de Março têm em média 27 m2. Se não bastam para a papelada de Mery é o suficiente para ele e a esposa. No vão único, uma estante postada no meio, divide o quarto e a sala, onde ficam instalados um fogão e uma pia já próxima ao banheiro. E basta. “Se há problema aqui é inerente ao desenvolvimento desordenado da cidade: falta de estacionamento e alguma insegurança. O povo da praça subia livremente para pedir esmola, mas já melhorou. E não eram marginais, mas aqueles excluídos da sociedade”.
Dorinha logo pede palavra: “O elevador é o mesmo da inauguração. É consertado quase toda semana. Era elétrico, passou a ser eletrônico, mas continua quebrando, é uma confusão”. Outro incômodo é a presença de pombos nas janelas ou no amparo do ar condicionado. Pousam sem cerimônia. Parecem ter percebido o 21 de Março nos últimos meses. Mery acredita que uma proteção colocada no Palácio Felipe Camarão, ali próximo, provocou a migração das aves. “Mas não atrapalham, nem a movimentação comercial no edifício. Parece que teve um problema no passado, mas não estávamos aqui”.
(Mery faleceu em 9 de julho de 2020, aos 77 anos)
O DEDO DA TRAIÇÃO
Sangue, traição, reuniões clandestinas, “malassombro”, amores, solidões, ódios e 44 anos de história social, política e econômica da cidade. O 21 de Março viveu quase tudo o que é possível viver sem desmoronar. E ainda hoje alimenta a trama miúda das vidas comuns. A aura já é mais pacata. O velho espigão está cansado de tanta história. Já coleciona alguns episódios dignos das primeiras páginas da crônica policial de uma província.
O caso de uma secretária casada e o seu chefe quase acaba em tragédia no 21 de Março. O marido traído subiu o elevador com uma faca enrolada em um pano. As recepcionistas sequer desconfiaram. Foi há 16 anos. A ascensorista Miriam Rodrigues, hoje com 35 anos, lembra de tudo: “Só ouvimos o grito. Aí desceu o marido correndo pelas escadas. Depois foi outro grito: ‘Meu dedo, meu dedo!’. E aparece o homem com a mão ensanguentada”.
O marido traído subiu até o escritório de representação onde a esposa trabalhava, no segundo andar. O amante se antecipou, estirou as duas mãos para conter o marido na entrada do escritório e recebeu um golpe de facão que decepou seu dedo. Os dois saíram correndo pelas escadas, um para fugir, o outro para ser socorrido. “Quando a doutora que estava junto da gente na recepção viu o homem sem dedo me pediu para subir lá e colocar o dedo em um copo de gelo”. Miriam atendeu ao pedido. “O dedo estava inteirinho no chão”.
Outro caso semelhante aconteceu no fim do ano passado, no último andar do prédio. Dessa vez foi a esposa quem descobriu o caso do marido com a secretária. E o facão deu vez a uma tesoura. “Ela queria cortar o cabelo da secretária, amiga dela, um cabelo grande, bonito. Mas sangrou muito. Acho que no ímpeto da raiva ou de repente foi mesmo a intenção, ela perfurou o pescoço da menina. Veio polícia aqui, encheu de gente. Num abri nem a porta. Sei que daqui até a portaria tinha sangue, recorda o síndico Arnaldo Félix.
O ETERNO SÍNDICO
O cisne posudo da década de 60 não chega a ser um patinho feio no novo século, mas após décadas de resistência, apresenta carências estruturais. Pior talvez seja contornar casos – mesmo que pontuais – de condôminos problemáticos. A tarefa cabe ao corretor de imóveis Arnaldo Félix, exaltado como eterno síndico, mesmo há seis anos no cargo. É que Arnaldo chegou ao 21 de Março há 36 anos.
Do interior do Estado à Casa do Estudante e, até o trabalho de zelador no 21 de Março, este foi o périplo de Arnaldo Félix até a sala da administração do edifício, no último andar. “O pessoal aqui é tranquilo. Não sei se pela idade mais avançada. E olha: se chega um jovem de sua idade, e depois um casal como Mery e Dorinha para comprar um apartamento, não tenha dúvida que deixo o jovem fora”.
Aos condôminos mais chatos, ele devolve o problema: “Pergunto qual solução ele traria se estivesse no meu lugar. Sem a experiência de 36 anos, baixam logo a crista e procuramos resolver a situação da melhor maneira”. Mas nem sempre é fácil. Além do elevador problemático (o próprio repórter ficou preso em uma das idas e vindas ao 21 de Março), alguns poucos moradores fogem à regra da boa conduta.
Arnaldo resiste em comentar o assunto indelicado: um morador viciado em crack. Mas admite ter tomado as providências possíveis. Impede acesso de amigos para evitar venda da droga no prédio. Comunica a família em situações anormais e atende sob urgência qualquer reclamação de vizinhos. “É um caso passível de acontecer em qualquer condomínio”, lamenta.
O morador é um senhor formado, de 55 anos. Tem recaídas esporádicas. Durante a reportagem estava internado na clínica. “Ele passa sete meses normal, mas cede ao vício. Quando está por aqui redobramos a segurança. E graças a Deus, quanto a isso, nunca houve problema”, se orgulha.
O lamento de Arnaldo é outro: “Gostaria muito de morar aqui”. O espaço pequeno impossibilita. Arnaldo mora com a esposa que conheceu no 21 de Março, quando ele ascendeu ao cargo de administrador e cedeu a vaga de ascensorista à futura esposa. As duas filhas cresceram no 21 de Março até a necessidade de lugar maior e a mudança à atual casa na Zona Norte.
Arnaldo procura manter a característica comercial do edifício, sem muito esforço. “Ninguém quer sair daqui. É difícil abrir vaga. E quando há, analiso a proposta”. A porcentagem aproximada de moradores é de apenas 30%. São 27 unidades residenciais dos 11 apartamentos por andar. Ainda assim há muitos que vêm apenas em datas comemorativas para ver os filhos. “Se a maioria fosse de moradores podia dobrar meu salário e eu não aceitaria ser o síndico”.
SOLIDÃO À ESPREITA
Ozélia Alves, 46 anos, se gaba de morar onde trabalha, no escritório de contabilidade distante alguns lances de escada. “A desvantagem é a solidão”. Onde morava, no conjunto Pajuçara, gostava da companhia dos vizinhos e das plantas. “Estou aqui há três meses. Sou a mais nova do prédio, ainda me acostumando”.
Quando bate a agonia da solidão, Ozélia abre a porta do minúsculo apartamento, no 311. No inconsciente, o quintal repleto de jasmins. Mas se depara com os corredores antigos e vazios do 21 de Março.
Para Ozélia, o tamanho do apartamento onde mora com a filha Gabi não é empecilho para um novo casamento. “Se aparecesse alguém de futuro acho que me mudaria”.

Ozélia também pensa em largar tudo: a solidão, os corredores vazios e a proximidade do trabalho. Acompanharia a filha em viagem só de ida ao exterior, quando ela terminasse o segundo grau.
“Acho que não atrapalharia muito ela”. Ozélia diz sentir mais falta do quintal. “Quando bate a saudade eu desço pra conversar com Zélia”. E Ozélia desce muito para conversar com Zélia Maria Barbosa, 48, recepcionista do 21de Março desde 1983. É das poucas ali a rejeitar a ideia de morar no edifício.
“Morro de medo desse elevador. Já fiquei presa aí uns 30 minutos uma vez. Não me adaptaria”. O detalhe curioso é que Zélia é também ascensorista. De segunda a sexta-feira desce e sobe no elevador do prédio, e nos fins de semana fica na portaria. “Mas para morar não daria certo. E, se de madrugada eu fico presa?”. Prefiro minha casa no Vale Dourado (Zona Norte)”.
A SAUDADE DO ACONCHEGO
O pequeno Marlon – menino prodígio do reggae local – era bebê quando a mãe Joana Eulina, 57, chegou ao 21 de Março, há uma década. Hoje moram três no apartamento ambientado por um arquiteto. “Ele fez milagre aqui. Mas olha: se fosse metade desse tamanho ainda moraria aqui”, brinca Joana, com um fundo de verdade. A aposentada é uma entusiasta do lugar. “É espetacular. A vista é linda. Tem a segurança, a praticidade e as apresentações de Marlon por aqui pelo Centro”.
Joana morava em edifício mais espaçoso, com dois quartos, suíte, duas salas, varanda grande, e situado em frente à Pedra do Rosário, também com vista privilegiada. “Mas sempre fui fascinada pelo Centro”. E alugou uma sala no nono andar do 21 de Março até comprar a atual moradia no quarto piso. Mas houve um hiato de oito meses até a compra. Quando o proprietário pediu o apartamento de volta, Joana foi obrigada a largar o prédio. Conseguiu casa no Centro, na rua Prof. Zuza, mas voltou. “Quando soube que tinha uma vaga lá, deu saudade e voltei”.

E Joana sabe tirar proveito do aperto. “Aqui a família fica mais unida. Não tem jeito de se isolar”, brinca. Mas eles permanecem pouco no apartamento. Nas vezes em que o repórter visitou o 21 de Março, Joana descia os elevadores ou era vista pelas ruas do Centro, via de regra na companhia de Marlon. As pessoas se encantam com o visual rastafári do pequeno Marlon. Perguntam de qual país e chateiam Joana quando questionam se é adotivo, pela diferença de cor entre mãe legítima e coruja e o filho caçula.
Ali perto também fica o Colégio das Neves, onde Marlon é o único bolsista. Quando uma freira viu Marlon ainda criancinha cantando seus reggaes, pediu a bolsa à supervisora.
E dali Joana vive e não pretende sair mais. “É difícil alguém sair daqui. Só vendem quando os mais antigos, apegados ao edifício, morrem, e os filhos põem à venda. Pessoas com boas condições já procuram o 21 de Março. É pequeno, mas a simplicidade às vezes vale mais, sabe?”.