In Memoriam Manoel Fernandes “Volonté” de Souza Jr.

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Partiu meu primo “Voluntas”, a quem, ‘sobrenomeando’, eu chamava carinhosamente de Voluntas voluntatis. É dele essa pérola poética: “No começo era o Verbo, depois chegaram os canalhas”. Estava com um livro pronto para ser lançado, provisoriamente intitulado “Lares Palustres”, tendo em epígrafe estes versos do poema “outono de rã”, de Sylvia Plath (1932-1963), em tradução de Jorge Wanderley:

O verão envelhece, mãe impiedosa.

Os insetos vão escassos, esquálidos.

Em nossos lares palustres nós apenas

Coaxamos e definhamos.

As manhas se dissipam em sonolência.

O sol brilha pachorrento

Entre caniços ocos. As moscas não chegam a nós.

O charco nos repugna.

A geada cobre até aranhas. Obviamente

O deus da plenitude

Está morando longe daqui. Nosso povo rareia

Lamentavelmente.

(Frog Autumn [1958]

Summer grows old, cold-blooded mother.

The insects are scant, skinny.

In these palustral homes we only

Croak and wither.

Mornings dissipate in somnolence.

The sun brightens tardily

Among the pithless reeds. Flies fail us.

The fen sickens.

Frost drops even the spider. Clearly

The genius of plenitude

Houses himself elsewhwere. Our folk thin

Lamentably).

Volonté associava esses lares palustres ao famoso “haicai da rã (ou do sapo)”, de Matsuo Bashô (1644-1694), um dos poemas mais traduzidos no mundo:

古池や

蛙飛び込む

水の音

Furu ike ya

kawazu tobikomu

mizu no oto.

Sobre esse poema, de concisão comparável às colagens de Volonté ou aos “recortes” analíticos que fazia dos grandes filmes, Matheus Mavericco escreveu:

“Bashô começa falando de um velho açude, contempla o sapo mergulhando na água e então, após o que chamamos de ‘kireji’ (ou seja, uma pausa para que o leitor suspire, feche os olhos e prepare o coração), o barulho da água: ‘mizu no oto’. Note que o sapo, o açude e o universo inteiro desaparecem no terceiro verso, dando lugar apenas àquele tipo de paz interior que sentimos depois de um treino exaustivo quando um chuveiro quente amolece primeiro a cartilagem e só depois a epiderme. É um poema revolucionário”.

Meu subversivo primo, contudo, não associava Plath diretamente a Bashô: fazia isso indiretamente, através da paráfrase deste por Luís Antônio Pimentel (em “Tankas e haikais”, 1953):

Um velho lago parado… cerrado… calado…

de águas turvas e tranquilas,

realizava, no deslumbramento da noite clara,

seu sonho antigo de ser espelho…

Seu fundo lodoso e sombrio

refletia, cheio de orgulho,

um cortejo relumbrante de estrelas,

quando um sapo, asqueroso e profano,

saltou sobre ele,

arrancando de suas águas

um arrepio de pavor

e um gemido estrangulado de agonia…

Escatológica essa combinação de um sapo “asqueroso e profano” com um charco que, deserdado pelo deus da plenitude (que há muito mora longe daqui – dizem que Deus é brasileiro, mas mora nos E.U.A.), alberga aqueles que definham coaxando. São menos que aqueles batráquios versejados por Manoel Bandeira (1886-1968; de quem Volonté gostava especialmente do poema “Mangue”, do livro “Libertinagem”, ed. em 1930), na primeira quadra de “Os sapos” (1918):

Enfunando os papos,

Saem da penumbra,

Aos pulos, os sapos.

A luz os deslumbra.

Aproximam-se, contudo, ao obscuro cururu dos versos finais:

Lá onde mais densa

A noite infinita

Veste a sombra imensa;

Lá, fugido ao mundo,

Sem glória, sem fé,

No perau profundo

E solitário, é

Que soluças tu,

Transido de frio,

Sapo-cururu

Da beira do rio…

Evadiu-se do charco meu terno primo Volonté… Tomou um “táxi para a Estação Lunar”, e atravessou o “Portal de Tannhäuser”. Foi a única pessoa que conheço, genial que era, que associou a poesia de Arthur Rimbaud (1854) ao monólogo final de “Blade Runner” (filme de 1982):

“Eu vi coisas em que vocês não acreditariam. Naves de ataque em chamas ao largo do ‘Ombro de Órion’. Eu vi raios-C brilharem no escuro próximo ao Portal de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer”.

Disse o estelar Volonté, em frase reconstituída por Joanilo de Paula Rego:

“…os rios me deixam descer até onde quero. Escrevo andando, dormindo, sonhando. Escrevo bêbado e releio em jejum. Na última travessia do ‘Bateau Ivre’ [de Rimbaud], vi arquipélagos siderais e ilhas cujos céus delirantes estão abertos aos navegantes, geleiras, sóis de prata, ondas nacaradas, céus de flamas. Mas, verdadeiramente, demasiado chorei. As auroras enlouqueceram. Toda a luz é atroz e todo céu é cruel”.

Vá em paz, meu precioso primo!

Crédito da foto: Eduardo Alexandre Garcia (Dunga); na frente do “Bar do Pedrinho” (“bar do Nélio”; “Bar do Ladrão”), em 16/07/2022 – “Dia do Rock”.

Edrisi Fernandes

Edrisi Fernandes

"Humain, malgré moi (lui)"

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1 Comment

  • Anchella Monte

    Belo texto, justa homenagens.

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