Uma feijoada em contraponto barroco

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Croniketa da Burakera #39, por Ruben G Nunes

De repente foi aquela confusão de pernas avançando para a mesa. Pernas de todos os calibres. Avançavam risonhas. Passo estugado.

Emaranhavam-se. E perdiam a identidade própria. Enchiam o espaço de cores e movimentos andantes e moderatos. Em close, eram passos curtos, agressivos, indecisos, agressivos ou calmos. Abrindo a perspectiva, parecia enorme hidra. Uma centopeia humana.

As pernas avançavam.

Vozes soltas, risadas, gritos, conversas, ruídos de pratos, talheres, copos. As pernas continuavam avançando numa dança estranha. Havia uma música espargindo som barroco, pontuado, em fuga perpétua bachiana. Lembrava a paz soturna de castelos medievais, por cujas escadarias de pedra úmida descia o Conde Drácula e sua sombra sinistra.

Por vezes lembrava uma paisagem campestre calma. Que a mente teimava em estruturar. Mas sempre fugia com os acordes pontilhados da fuga.

Talvez por conta das duas caipirinhas a paisagem abstrata interior transfugia, dançava, fazia piruetas irrequietas. Os caboclos desentocam. E abrem os zôios

As pernas se abriam-fechavam coloridas,, alegres… e avançavam.

Glug, glug, glug, glug… ploc… ploc… preparei a segunda dose de uísque com duas pedras de gelo pra rebater as caipirinhas. Abri as comportas da imaginação.

Seres irreais pularam no ambiente e começaram a participar. Tronchura total.

Anãozinhos cochichavam entre si e saiam correndo. Gnomos astutos se escondiam rindo sob as saias das mulheres. Enorme coelho branco, bem vestido, com relógio de corrente no bolso do colete, passou apressado. Tirou o relógio e gritou: Eita porra! Vou chegar atrasado demais no jogo do Flamengo! Acho que era o coelho de Alice, de Lewis Carrol, repaginado.

Não havia mais parede na sala – em seu lugar um vale verdejante se estendia ao longe… campos de trigo… florestas… vales… um rio encolhia em voltas e alongava seu corpo líquido. Manadas de grifos amarelos amarelavam a cena. Seus cascos azuis corriam frenéticos no descampado.

De repente, foi chegando um bando de hippies com seus longos cabelos e colares de dentes de plástico. Começou a tocar não sei de onde Born On the Bayou, com Creedence Clearwater. A hipalhada ficou elétrica. Dançavam que nem zumbis chapadões. Fumaçavam umas bagas de marafa. Fumacê daporra, véi! Daí o DJ, lá deles, lascou Love, Devotionn and Surrender, de Santana. Um arraso!

Estranhamente, havia um navio pirata navegando no céu. Seus tripulantes dançavam bêbados em torno de uma barrica de rum preto cubano.

As pernas não mais caminhavam. Mas flutuavam e dançavam por sobre o vale um jazzminueto doido de Zéca Bastião Bar…

Drácula – o Conde – de óculos escuros, bregacalçapantalona, sempre sedento de sangue, s’enfiava-entrepernas suculentas duma ninfa menstruada que gemia agudos histéricos em lá-sustenido-menor, que nem desvairada cantora de ópera.

Fui apresentado a alguém. Só não tinha certeza se vinha do mundo real. Oi!… digaí! prazer!

Quatro crianças irromperam no cenário. Elas falavam uma língua estranha. Procuravam pelo pai. Eram alegres, coradas. Brincavam jogando bolas de neve entre si. Um enorme cão dinamarquês pulava com elas. Mais duas crianças surgiram. E foram todas irmanadas brincar de roda num gramado azul…

As pernas se contorciam-apressavam num avanço inexorável.

A coisa toda agora estava esquentando. Os duendes, Conde Drácula e toda gang resolveram investigar minuciosamente as fendasfêmeas circunjacentes. Subiam pelas pernas das mulheres e se penduravam nos pelos como macacos. Os grifos copulavam desesperadamente. Daí, um barulho infernal de cascos e urros em contraponto bachiano.

O grande coelho iniciava uma masturbação apressada e elegante, mas sempre consultando o relógio de corrente. Os hippies estavam completamente desligados do aqui-agora. E murmuravam palavras ininteligíveis.

Drácula – o Conde – se demorou um pouco mais na fendafêmea duma náiade que estava de boi. Ele tinha sede.

As pernas continuavam firmes no seu avanço e não se importavam com nada. Súbito, as pernas pararam em torno de uma mesa grande.

Lá estava a feijoada.

As pernas marcaram passo, ora num pé, ora no outro. Cresceu o vozerio. O ruído de talheres, garfos, copos, se tornou ensurdecedor. Aumentou o ritmo energético. O ar ficou elétrico. A música barroca foi esvaecendo. O cenário esfumando…

A feijoada sorriu… lambeu os beiços… e engoliu a todos!

Ruben G Nunes

Ruben G Nunes

Desfilósofo-romancista & croniKero

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