Um dos maiores letristas da canção brasileira, Belchior sempre dialogou com a música e a literatura através da intertextualidade: José de Alencar, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Edgar Allan Poe, além de Bob Dylan e The Beatles, são alguns dos que ele notoriamente parafraseou em seu versos.
Compositor refinado, conhecedor de literatura e língua latina, Belchior usava as suas palavras como instrumento de militância a despertar consciências. Interessante observar os muitos diálogos que ele manteve com outros textos literários e canções. Sua importância está, de modo especial, na profundidade intelectual da obra.
Talvez, um dos diálogos mais evidentes de Belchior tenha sido em “Comentários a Respeito de John”, parceria com o potiguar José Luiz Penna, explícito nos versos “A felicidade é uma arma quente”, do clássico “Happiness is warm gun”, do LP The Beatles ou “Álbum Branco” de 1968. No início da canção: “Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho/Deixem que eu decido a minha vida/Não preciso que me digam, de que lado nasce o sol/porque bate lá o meu coração”. Clara alusão ao fim da banda inglesa, e ao desejo de Lennon de seguir carreira solo e de reencontrar Yoko Ono.
Em “Medo de Avião”, o poeta cearense além de sugerir o medo de ser exilado, em época de ditadura, fez clara referência à banda britânica nos versos “I wanna hold your hand”. Na letra de “Velha Roupa Colorida”, temos “Like a Rolling Stone”, de Dylan, e nova alusão aos Beatles com “She’s leaving home”, além do “Corvo” de um ícone da literatura, Edgar Allan Poe.
Em “Pequeno Mapa do Tempo” temos referência à antiga canção folclórica popular ao tempo da colonização do Piauí, (“Meu boi morreu/ o que será de mim?”) ,além de crítica indireta ao regime militar. Começa com “eu tenho medo e medo está por fora”, e segue com “eu tenho medo que chegue a hora em que eu precise entrar no avião”, alusão ao exílio.
Em “Como Nossos Pais” enxergamos “Na parede da memória/Essa lembrança/É o quadro que dói mais”, alusão a Carlos Drummond de Andrade, e em “À Palo Seco”, a João Cabral de Melo Neto. Em “Tudo Outra Vez”, “a normalista linda” remete ao samba de Benedito Lacerda e David Nasser, cantado por Nelson Gonçalves, e à valsa “Danúbio Azul” composta por Johann Strauss II.
Em “Conheço o Meu Lugar”, há referências a García Lorca e a Fernando Pessoa; em “Apenas um Rapaz Latino- Americano”, “tudo é divino, tudo é maravilhoso” lembra Caetano Veloso. Caetano, por sinal, também é citado em “Coração Selvagem”, nos versos “Meu bem que outros cantores chamam Baby” (reporta-se à canção “Baby”, de Veloso).
Em “Divina Comédia Humana”, alusão a Dante e ao poeta parnasiano Olavo Bilac, nos versos “Ora direis, ouvir estrelas/certo perdeste o senso/Eu vos direi, no entanto”… Em “Arte Final” alude a Hemingway: (“Não perguntes por quem os sinos dobram”), além de dar pista da sua vida desprendida: “Alguém se atreve a ir comigo/Além do shopping center?”. Como ele já tinha feito em “Coração Selvagem”: “Meu bem, vem viver comigo, vem correr perigo, vem morrer comigo”. Outro sucesso de Belchior, “Alucinação”, cita clássico filme de Stanley Kubrick: “Longe o profeta do terror/Que a laranja mecânica anuncia”.
Poesia, literatura e cinema
São inúmeras menções às artes de modo geral em suas canções. Poderíamos citar ainda referências dele a Álvares de Azevedo, “Lira dos Vinte Anos”; Erasmo de Roterdam, “Elogio da Loucura”; Camilo Castelo Branco, “Amor de Perdição”; e Rimbaud na canção “Os Profissionais”, a Balzac (“A Comédia Humana”), a Baudelaire na canção “Vicio Elegante”, a Afonso Arinos com “Retórica Sentimental”, a Euclides da Cunha, Zé Dantas e Luiz Gonzaga em “Noticias de terra civilizada”, entre vários outros, como Lord Byron, Castro Alves, Shakespeare, William Blake….
Uma das mais inteligentes críticas à censura imposta pela ditadura militar está em “Apenas um Rapaz Latino-americano” (1976): “Não me peça que eu lhe faça/Uma canção como se deve/Correta, branca, suave/Muito limpa, muito leve/Sons, palavras, são navalhas/E eu não posso cantar como convém/Sem querer ferir ninguém…”.
Entre os grandes discos da sua fase áurea estão “Alucinação” (1976), “Coração Selvagem” (1977), “Todos os Sentidos” (1978), “Era uma Vez um Homem e Seu Tempo” (1979) e “Objeto Direto” (1980). Esses são apenas alguns dos LPs mais conhecidos de Belchior, que deixou vasta obra.
As letras de Belchior não devem ser apenas escutadas e aplaudidas, devem ser objeto de reflexão e estudo, inclusive em todas as escolas do País como uma das maiores expressões poéticas da MPB. Fica evidente que Belchior abriu mão do show business da música comercial, para investir em uma obra poética duradoura e com força crítica, o que o afastou da mídia.
Por esses e outros motivos é que a obra do cantor e compositor cearense será eternizada.
FOTO: Benedito Salgado