Time to love: uma reflexão sobre o amor platônico

time to love

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Eu escolho te amar
em silêncio,
porque em silêncio
eu não encontro rejeição.

Escolho te amar
em solidão,
porque em solidão,
mais ninguém te tem senão eu.

Eu escolho te adorar
à distância,
porque a distância,
me protegerá da dor.

Os versos do poeta místico persa Jalal Ud Din Rumi dão o tom do drama Time to Love (Sevmek Zamani,1965), pequena obra-prima do cineasta Metin Erksan, um dos expoentes da Nouvelle Vague Turca.

Erksan roteirizou e dirigiu a peculiar história de amor entre Halil (Müşfik Kenter) e Meral (Sema Özcan), ou melhor, entre Halil e o retrato de Meral, promovendo uma delicada reflexão sobre o amor platônico.

Para Halil, um homem simples que trabalha como pintor, ter sido abraçado pelo olhar acolhedor do retrato de Meral foi o ápice de sua existência. Pela primeira vez ele se sentiu totalmente aceito, sem julgamentos de aparência ou classe social; o retrato havia enxergado a sua alma. A partir de então, ele estabeleceu uma relação de amor profunda com aquele retrato. Passou a visitá-lo diariamente, ao longo de um ano, quer fizesse chuva ou sol, pois havia trabalhado na mansão dos pais de Meral, na Ilha de Büyükada, uma das Ilhas do Príncipe, na Turquia. O acaso faz com que a própria Meral flagre Halil contemplando o seu retrato. Ela fica intrigada ao saber sobre aquele amor platônico, afirmando ter ele medo de se entregar ao amor de verdade. Halil responde que está apenas preservando o sentimento por algo que lhe faz bem. Afinal, a relação de fantasia estabelecida com o retrato é perfeita porque segura e constante. A realidade colocaria tudo a perder, principalmente por eles serem de mundos diferentes. Meral não se conforma e diz poder amá-lo também, no que ele retruca:

E se eu estivesse apaixonado por você ao invés do seu retrato? Possivelmente você não teria olhado para mim. Talvez você não teria levado a sério o meu amor.

O distanciamento entre Halil e Meral é enfatizado pelo constante desvio de olhares, bem como pelo posicionamento deles nas cenas (em geral, um fica de costas para o outro ou ambos ficam de costas para a câmera). Eles somente irão se encarar e se abraçar ternamente com quase uma hora de filme.

Ao se dar conta de que alguém a ama com tamanha intensidade, mas rejeita a recíproca do amor no âmbito físico, Meral fica desconsolada. Ela resolve dar o retrato de presente a Halil e retorna a Istambul. Aproveita para abrir o jogo com seu namorado Basar (Süleyman Tekcan), um playboyzinho preconceituoso e metido a valentão. Basar fica enciumado, não entende e nem aceita que Meral possa estar enamorada por um homem de classe social inferior, que inventou uma história maluca para se aproveitar dela. Ele insiste em manter o relacionamento, como se procurando garantir o que é “seu”.

Diferente de Pigmalião, que deu vida à estátua esculpida para viver o amor aguçado pela beleza das formas e simetrias, Halil se prende a um amor idealizado. E Meral, por sua vez, não consegue tocar sua vida porque presa ao sentimento que Halil despertou nela. No entanto, o amor só pode existir sendo livre, o que nos leva à indagação provocativa de Rumi: Por que você permanece na prisão quando a porta está completamente aberta?.

Cabe a Mustafa (Fadil Garan), dervixe e amigo de Halil, fazê-lo entender o quão egoísta é insistir naquela idealização. Assim, Halil vai a Istambul para procurar por Meral. Tudo fica ainda mais confuso para ele, pois a realidade se choca duramente com a fantasia. Ao fugir do sofrimento, Halil causa ainda mais dor para ambos. A partir desse momento, ele não consegue mais trocar o olhar contemplativo com o retrato.

Se a fantasia garantia segurança e estabilidade, a realidade que bateu à porta, e não foi recebida, dará um jeito de entrar. Quando Halil finalmente abraça a realidade, deixando o amor acontecer de fato, ele atrai também Basar. Preso à matéria, Basar é o oposto de Halil. Ele confunde amor com posse. É inconcebível a Basar que Meral seja feliz sem ele. Tragédia anunciada.

A forma como Erksan mostra o desenrolar dos fatos no Terceiro Ato, apenas com gestos e olhares, é sublime. Pressentimos a interrupção do lirismo pela alteração da trilha sonora, mas o amor dentro daquele bote, visto de longe, se agiganta até ser exterminado.

Timo to Love presta reverência a Antonioni, Bergman e Dostoiévski. Em pensar que um filme dessa envergadura não conseguiu ser exibido nos cinemas por falta de um distribuidor à época é de torcer o coração do mais singelo cinéfilo. Pensando nisso, a MUBI escolheu Time to Love como o primeiro filme a passar por um processo de restauração pela plataforma, em novembro de 2022, dez anos após o falecimento de seu diretor. A fotografia em preto-e-branco ganhou novas texturas e matizes, e o som do oud turco ficou mais límpido, convidando-nos a embarcar nesse conto sui generis sobre o amor.

Milena Azevedo

Milena Azevedo

Mestre em História (Unisinos/RS), já foi professora e empresária, e desde 2005 milita no campo das histórias em quadrinhos. Atualmente segue como diagramadora, letrista e roteirista de HQs e games, com trabalhos publicados em coletâneas locais, nacionais e em Portugal e Angola, finalistas do Troféu HQ Mix, do Troféu Angelo Agostini e da categoria Quadrinho Alternativo do Festival de Angoulême (França), entre eles: Visualizando Citações - vols. 1 e 2, Fronteira Livre, Máquina Zero - vol.2, Imaginários em Quadrinhos - vol. 4, Haole (webcomic), Amor em Quadrinhos, Penpengusa, Contos Urbanos e Café Espacial #19. Vencedora do Troféu Angelo Agostini de 2019 (Melhor Lançamento) e dos HQ Mix de 2019 e 2020 (Melhor Publicação Mix e Melhor Publicação Aventura/Terror/Fantasia) com Gibi de Menininha 1 e 2. Em 2022, roteirizou as HQs “Oscar e o Pan de 87” e “Viúva Veneno”, ambas publicadas pela editora Ultimato de Bacon. Também criou a webtira Aprendiz de Bruxa, em parceria com Ju Loyola, e atualmente a parceria segue com a desenhista Mari Santtos. Em 2018, fez sua estreia na literatura infantojuvenil com o livro Dara, Dora e as estrelas, escrito a quatro mãos com Glacia Marillac.

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