Olá, cervejeiros! Saudações!
A palavra terroir, de origem francesa, ainda que tão indescritível em seu significado de tradução quanto outras palavras de diversos idiomas, como, por exemplo, hype em inglês (clique AQUI para saber mais), saudade em português ou gattara em italiano (traduzido de forma mambembe como “mulher idosa que alimenta gatos de rua para aplacar sua amargura e solidão”), é algo comumente associado ao mundo do vinho. Por mais rebuscada ou de tradução difícil e pouco intuitiva que seja, terroir é um termo emblemático que teve seu uso popularizado e bastante difundido até mesmo entre os neófitos no mundo do fermentado de uva.
Na coluna de hoje, vamos ver se é possível transportar o conceito de terroir ao mundo das cervejas. Ou seja, vamos pensar nas possibilidades de adequar um termo tão próprio ao mundo da cerveja e de suas peculiaridades.
E para você, terroir é algo exclusivo da cultura dos vinhos ou é possível se amoldar ao mundo das cervejas também?
O que é terroir?
Terroir é uma palavra, por si só, bastante emblemática. Sua impossibilidade de tradução direta já denota a complexidade que ela busca carregar na polissemia inerente ao seu charme francês. Só de se pronunciar “terruá” (tɛʀwa:ʀ) já se enche a boca para algo complexo, pomposo, garboso e elegante. Talvez, a mera lembrança da associação natural que é feita da palavra com os vinhos e sua máxima expressão de elegância e sofisticação já seja suficiente para se imaginar algo grandioso.
Certamente todas estas são associações legítimas: vinho, elegância e alta cultura. Difícil ir contra os predicados descritos, por mais parcos ou escassos que sejam os (vossos) conhecimentos deste mundo quase inexpugnável.
Todavia, mais do que engrandecer a cultura vinicultora, é necessário ter em tela que foi ela quem desenvolveu o conceito mais elementar de terroir. Tal conceito parece ser uma conflagração de elementos químicos, biológicos, físicos, geológicos, geográficos e também possui uma expressão marcadamente cultural em si.
O escopo primordial do texto não se foca em abranger de forma dedicada e técnica todas as nuances ou componentes do terroir, ou se suas definições são adequadas ou não com os produtos ofertados (que costumam ter conexão com a propaganda feita a partir do que se entende por terroir). Pelo contrário, o intuito é apenas compreender minimamente o que é terroir para saber se é algo aplicável ao mundo cervejeiro ou não.
Por terroir, temos a definição (ainda que linguisticamente incipiente) que o vocábulo expressa uma relação íntima e intensa entre solo e o microclima (geografia, geologia e alguns outros fatores), onde os vinhos são produzidos. Literalmente, a palavra significa apenas “terra” (no sentido de solo), no entanto, expressa uma dimensão muito maior, em termos qualitativos, de tipicidade e de identidade. Ainda que se tente definir terroir parece que quanto mais se tenta encapsular seu conceito, mais fluido ele se torna, de modo que um conceito definitivo e perene soa um absurdo ontológico e semântico. O terroir apenas é.
Terroir cervejeiro: possibilidade ou absurdo?
Para se chegar a alguma clarificação conceitual da possibilidade de se admitir um terroir propriamente cervejeiro se faz necessário retornar aos ingredientes básicos de uma cerveja: água, lúpulo, malte e levedura.
Claro que cada um desses elementos pode variar de modo exponencial em virtude do local onde a cerveja é produzida, a qualidade da água terá certa influência no resultado final. Em alguns locais nem sequer é viável se produzir lúpulos em larga escala (o Brasil mesmo ainda não possui uma produção expressiva desse vegetal), os maltes terão certa expressão do clima e da região (quem não lembra da publicidade da Brahma na Copa de 2014 que alardeava que a cerveja havia sido produzida especificamente com a cevada plantada na Granja Comary em Teresópolis, local de treino e concentração da seleção brasileira – sendo que isso era uma grande inverdade, apenas jogada de marketing). Quanto as leveduras, trataremos em uma seção mais adiante.
Todavia, parece que os elementos citados e suas variações são mínimas, pois não temos NEIPA’s (ou New England IPA’s) produzidas apenas na região da Nova Inglaterra (New England) nos Estados Unidos, já que ao importar certos lúpulo, usar certos maltes e ter certos fermentos parece ser possível produzi-las em qualquer local do globo. Tal metodologia de produção soa inexequível no mundo dos vinhos, onde o terroir é algo mais presente.
A título de exemplo, não se concebe a produção de um Brunello de Montalcino em nenhum outro local do mundo que não seja na Comuna de Montalcino, que use a varietal Sangiovese e não possua a “Denominação de Origem Controlada” que regulamenta sua produção (daqui a pouco vem algum ANCAP ou neoliberal reclamar da “regulamentação estatal”… e vem pedir “liberdade econômica”, néscios!).
Resumidamente, não existe esse tipo de “Denominação de Origem Controlada” (ou qualquer outro termo equivalente IGP, DOCG, IGT, DOP[1], etc.) para o mundo cervejeiro. Este elemento sequer é uma “regulação de terroir”, mas serve como base para se compreender como a produção cervejeira e suas nuances em seus ingredientes não possui a mesma expressão da produção dos vinhos e de suas técnicas produtivas.
As demarcações geográficas expressas nos nomes dos vinhos, e em sua qualidade indelével é algo muito mais forte do que o aquilo que acontece com as cervejas, por mais que uma IPA possa ter o nome de uma região dos Estados Unidos em seu próprio nome (New England) tal fato não é um demarcador de origem ou de qualidade. Aliás, não é sequer um demarcador propriamente dito, ainda que sirva como elemento norteador do estilo cervejeiro, como o também é para as English Barley Wines, para as Baltic Porters (também conhecidas como Robust Porters) ou qualquer outro estilo que possua um gentílico a ele associado.
O uso exemplificativo das NEIPA’s é um pouco mais relevante porque não trata apenas de uma “nacionalidade” e sim de um espaço geográfico menor e mais delimitado, que é a Nova Inglaterra, e as inovações lupuladas propostas por John Kimmich, da cervejaria Alchemist, em Stowe, Vermont, no início dos anos 2000. Ainda assim, tais características não são suficientes para garantir um terroir para as NEIPA’s.
Terroir e Leveduras
É correto não forçar uma associação entre terroir e os demais elementos mencionados, como água, lúpulo ou malte na produção cervejeira, por mais que a Brahma tenha forçado a barra na copa do mundo de 2014 (todo dia um 7 a 1 diferente, não é marqueteiros de plantão?). Todavia, o quarto elemento básico da produção cervejeira pode abrir um precedente para que se possa ao menos cogitar se falar em um terroir cervejeiro: as leveduras.
E ao se falar de leveduras e sua máxima expressão cervejeira é necessário mencionar a escola belga como maior expoente de tal vertente. Caso exista um terroir cervejeiro, algo único e inimitável, condicionado por todas as variantes biológicas, geográficas, geológicas e culturais; talvez, seja o terroir belga.
Fechar essa questão parece ser prematuro, todavia, os estilos belgas, principalmente Geueze, Framboise, Kriek e Faro (advindos das Lambic), possuem uma expressividade local tão elementar que as tentativas que existem de tentar reproduzi-los em outras localidades soa como uma piada, de tão longe e tão distinto do original que o resultado da produção cervejeira costuma ser.
A fermentação espontânea própria das Lambic é algo não passível de reprodução, nem fora da Bélgica e, por vezes, nem mesmo em diferentes locais da própria Bélgica. Não são raros os casos em que uma cervejaria precisou se mudar e levou junto o teto, pedaços da parede e dos caibros, e, ainda assim o resultado posterior não foi equivalente ao que se tinha antes. Se podemos acrescentar mais algum detalhe conceitual à noção mais básica de terroir seria a sua irreprodutibilidade técnica em virtude da mudança dos seus fatores elementares.
No mundo cervejeiro, se o lúpulo, a água ou os maltes não são capazes de denotar tamanha expressão local, parece que as leveduras surgem como candidatas a interagir com os demais fatores de microclima para condicionar a produção de um terroir cervejeiro próprio por excelência.
Deve-se fazer a ressalva que nem todas as cervejas belgas são uma expressão fiel do “pretenso” terroir cervejeiro, bem como nem todo vinho branco feito na comuna de Chablis é considerado um Chablis. Quando se levanta a possibilidade de um terroir belga por excelência está se falando de estilos muito peculiares, de cervejas muito delicadas, algo que envolve a microflora de cada cervejaria e sua interação com uma miríade de fatores biológicos e climáticos a influenciar o resultado final.
Saideira
Confesso que eu não seria presunçoso ao ponto de cravar a existência de um terroir belga propriamente dito, até porque a conceituação de terroir é algo que mais beira o encobrimento que o desvelamento daquilo que ele efetivamente é.
Todavia, levantar as possibilidades para se pensar o que poderia ser um terroir cervejeiro por excelência é necessário. Ir além, e se cogitar a definição de terroir a partir dos estilos belgas é algo factível, ainda que não derradeiramente comprovado.
O mistério permanece no ar…
Existe um terroir cervejeiro?
Permito-me o benefício da dúvida.
Música para degustação
Como a definição de terroir perpassa em grande monta a questão do vinho e de sua cultura (que é mais bem desenvolvida, estruturada e pesquisada que a da cerveja, saliente-se), fica como recomendação sonora a música Juices Like Wine, da banda camaleônica suíça Celtic Frost, que apesar de ter começado como Proto-BM, nessa faixa toca uma espécie de Sleazy Rock, ou um Glam Metal despretensioso.
Enfim, “gostoso como vinho”!
Saúde e boas definições de terroir a todos!
[1] Todos são termos de denominação ou de origem para vinhos, em vários países diferentes, ainda que não se confundam com o terroir propriamente dito.