TERRA ESTRANGEIRA: Uma ponte para os sorrisos

BRAGA

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Braga – Portugal, 09 de Fevereiro de 2017.

Voltei à Braga para dar mais uma aula na Universidade do Minho, desta vez sobre os textos de Nietzsche acerca da origem da tragédia clássica. Antes da aula andei pelas ruas do pequeno centro medieval da cidade. No Porto ouvi gente falando mal de Braga, dizendo que a cidade é pequena, conservadora e provinciana. Talvez seja alguma rivalidade regional. Mesmo assim, o Minho parece mesmo trazer a marca do provincianismo católico português; algo que remontaria às supostas origens cristãs do povo do norte.

Reza o mito historiográfico que, por volta do século V d. C.,  os Visigodos criaram um reino no norte, com a capital justamente em Braga, que havia sido fundada muito tempo antes e estava, naquela época, sob influência do longínquo império Bizantino.

Após a conversão dos reinos germânicos ao cristianismo, a freguesia de Braga tornou-se o principal bispado de Portugal, transformando o Minho numa região ultra católica. Não é à toa que tenha sido aqui que o golpe de Estado de 1926, que deu início aos anos de salazarismo em Portugal, tenha sido deflagrado.

O curioso também é que, segundo pude apurar, tanto Braga quanto Barcelos, tiveram experiências difíceis com os brasileiros que começaram a vir para cá na virada do milênio.

As mulheres de Braga e de Bragança chegaram a fazer passeatas contra as “putas brasileiras” que supostamente vinham até sua cidade “roubar” seus maridos. Lembro que, em 2009, cheguei a dar uma entrevista para o Eurochanel sobre o fenômeno da prostituição turística nas cidades nordestinas. Uma equipe do canal baixou por Natal para investigar como se dava a rede de exploração sexual de mulheres, ligada ao turismo europeu, que aportava na capital potiguar e eu acabei sendo escalado para dar um olhar “filosófico” sobre o assunto.

Enquanto do lado de lá do Atlântico, em Natal, as meninas de periferia sofriam preconceito da elite eurodescendente, sendo chamadas de “raparigas de gringo”; do lado de cá elas eram chamadas de “putas” pelas senhoras minhotas. 

Aliás, o papel político conservador dessas “senhoras” na história do norte de Portugal é bem marcado. Em 1846, quando os camponeses do norte iniciaram uma revolta generalizada, dentro do contexto da revolução portuguesa que trouxe de volta pra terrinha o “nosso” Dom Pedro I (Pedro IV daqui), foram as mulheres que tomaram a frente. Como boa parte dos homens da região viajavam para tentar a vida no Brasil, as mulheres permaneciam administrando as fazendas e cuidando da família. 

A questão é que a revolta do Minho não foi uma revolução no espírito liberal, como ocorreu no Porto, anos antes. As mulheres católicas queimaram prédios de registro de propriedade imobiliária, enquanto se aliavam aos setores mais reacionários da Igreja de Portugal, para pedir pelo retorno de Dom Miguel, irmão e rival absolutista de Dom Pedro, a fim de que esse viesse a ocupar o trono dos Bragança e restaurasse a velha ordem feudal e absolutista que regeu a Europa no tempo do “Antigo Regime”.

Achei muito curioso que as descendentes dessas mulheres, cujos maridos e filhos viajavam para o Brasil e deixavam por aqui filhos e filhas com mulheres negras e indígenas, tenham protagonizado, no despontar do novo milênio, um movimento contra a imigração brasileira a partir do tema da posse sexual dos “machos portugueses”.

 O interessante é que o perfil de imigrante brasileiro mudou no governo Lula e com a crise de 2008, que afundou Portugal na merda, quebrando o fluxo desse turismo de classe média baixa da Europa para o nordeste brasileiro.

Durante o período de Lula e Dilma o que aconteceu foi uma invasão de estudantes brasileiros nas universidades portuguesas e a ideia de uma “intromissão sexual transracial”, cedeu lugar a uma perspectiva mais amigável, já que os estudantes, em tese, passariam algum tempo por aqui e depois “voltariam para a terra deles”.

Pude perceber a importância desses estudantes ao caminhar pelos corredores com salas vazias do prédio do Departamento de Ciências Humanas, Letras e Artes da UMINHO.

Na turma em que dei aula apenas dez alunos compareceram para ouvir minhas explanações sobre Nietzsche, o que não é inusual em um curso de graduação em filosofia, diga-se de passagem. O curioso é que a turma era formada por nove mulheres e apenas um homem. Isso sim, bem diferente do tempo em que eu era estudante na graduação de filosofia da UFRN.

___ Depois da reforma – me disse o professor Bernhard Sylla, meu orientador aqui no Minho – as coisas pioraram.

Ele fala sobre a reforma do ensino médio que transformou, aqui em Portugal, a filosofia em uma disciplina complementar, em um formato bem semelhante ao que se pretende fazer, a essa altura do campeonato, no Brasil governado por Michel Temer.

Um outro ponto que parece surtir efeito no esvaziamento das humanidades por essas bandas tem a ver com a ampla reforma do sistema universitário europeu, implantada após o protocolo de Bolonha. Agora, somando-se a crise que empurrou políticas de austeridade pra cima dos países da zona do Euro, especialmente os do sul, os professores são obrigados a captar recursos externos para viabilizar seus projetos e cobrar mensalidades nos cursos (as famosas “propinas”). Isso parece ter contribuído também, de certo modo, para um esvaziamento das humanidades e o abandono paulatino do interesse em disciplinas filosóficas.

Daí a dependência de muitas universidades portuguesas da matrícula de alunos brasileiros, que vem para a terrinha fazer suas graduações e pós-graduações. Isso deve gerar, de certa forma, um outro tipo de relação conflituosa, diferente daquela que perturbava as conservadoras senhoras católicas do Minho, com seu racismo disfarçado de moralismo sexual.

Na estação de trem, já à noite, no retorno para o Porto, lembrei de uma “rapariga” grávida que me atendeu numa tasca no centro medieval de Braga e me serviu um bacalhau e uma taça de vinho verde. Quando passei pela rua ela estava parada em frente ao estabelecimento e, após sorrir pra mim, perguntou se eu teria interesse de ver a “ementa” (o que chamamos por aqui de “cardápio”).

Acredito que tenha sido o primeiro sorriso que recebi de uma minhota desde que aportei aqui pelo norte. O sorriso daquela galega portuguesa, com uma criança no ventre esperando para nascer em um mundo que me parece cercado por fronteiras que ameaçam se fechar e fadado a tornar-se cada vez mais conservador; me deu uma certa sensação de esperança.

Talvez, mesmo diante da resistência empedernida das senhoras católicas do Minho, algo da cultura brasileira tenha sido transmitida nessas terras do norte e deixado uma marca aqui, como deixou também marcas profundas lá do outro lado do Atlântico, no meu solo potiguar (isso porque a maioria dos imigrantes portugueses que baixavam em nossos litorais vinham desse norte católico e conservador).

Quem sabe o sorriso, essa arma secreta que nós, nordestinos, aprendemos a usar como uma chave mágica para abrir portas e portais, tenha aportado por essas bandas, ajudando a construir pontes, sobre os muros que nos separam.

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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