TERRA ESTRANGEIRA: Ninguém se arrepende de nada!

o bê desse bode é ibérico

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Porto – Portugal, 21 de Janeiro de 2017.

 Faz alguns dias que as temperaturas no norte de Portugal chegaram a graus negativos e eu tive a sensação de ter cruzado uma fronteira. A tal massa fria de ar polar que estava descendo da Escandinávia e que cobre a Europa de branco chegou a Portugal essa semana, como era anunciado há vários dias pela TV, fazendo com que os termômetros despenquem para temperaturas negativas.

É certo que a humidade do Porto torna tudo mais intenso no que diz respeito ao conceito de frio. Meus ossos chegam a doer como se a humidade do ar ultrapassasse os limites da pele e avançasse sem piedade por dentro do corpo até as minhas cartilagens mais íntimas.

Também, com essa passagem da temperatura para graus negativos, comecei a sentir um cheiro metálico estranho, além, é claro, de um soturno sentimento de imobilidade ao redor da casa em que estamos, aqui na freguesia da Cedofeita (um nome que curiosamente me traz conotações canábicas e velhas memórias tropicais). Estamos bem em frente à estação de Metro da Carolina Michaelis e, pela madrugada insone, através dessa densidade metálica do ar, pude ver o vazio dessas ruas. Nada parece se mover. Nada transita, a não ser a marcação do termômetro indicando o percurso da temperatura ladeira abaixo.

Ainda bem que a gripe já me pegou e me largou faz uns dias. Cometi o erro de aquecer demais a sala de trabalho, colocando o ar condicionado acima dos 25 graus. Passo um bom tempo do dia por aqui nessa sala, literalmente suando para decifrar um PDF sobre Nietzsche com uma edição de 1931 do filósofo Alfred Baeumler escrito em alemão com caracteres góticos. Quando saio da sala para transitar pelos corredores frios da casa, o choque térmico dá um sacode no meu sistema imunológico.

Ainda bem que fiquei arreado apenas dois dias porque ontem Carito Cavalcanti chegou aqui no Porto. Ele veio se hospedar na casa de Renata Silveira e me convidou para gravar cenas para seu novo filme (“O bé desse bode é ibérico”). A ideia dele é fazer um road movie conectando o Seridó potiguar e o norte de Portugal.

Acabamos nos encontrando ontem mesmo e acompanhando Renata para assistir uma animação de uma amiga dela que está sendo exibida no Planetário do Porto, vizinho à faculdade de Arquitetura.

A animação é uma intervenção ao redor de uma foto da sonda Voyager que, ao passar por Júpiter e se despedir para sempre de nós, avançando para além do sistema solar, como uma mensagem dentro de uma garrafa jogada ao mar por um náufrago, voltou-se uma última vez para a terra e fotografou nosso planeta de uma distância astronômica.

Ali estava, diante de nós, no Planetário do Porto, aquele pálido ponto azul boiando no espaço frio. Essa imagem fez com que Carl Sagan escrevesse uma bela crônica sobre nossas inutilidades cotidianas e todas as bobagens humanas que nos perturbam. Das nossas guerras de religião aos nossos nacionalismos racistas, dos nossos sonhos de poder e eternidade a nossas misérias afetivas.

Talvez, a mensagem do texto, narrado com o sotaque lusitano da amiga de Renata, tenha me deixado mais susceptível a pensar sobre essa tênue linha que separa os povos, mas que também pode uni-los. Uma linha fina, mas paradoxalmente, ao mesmo tempo, aparentemente inexpugnável. Algo que parece que o filme de Carito vai tratar também.

O fato é que quando saímos da exibição do curta no planetário e fomos jantar na casa de Renata, ela acabou por nos preparar uma alheira de Mirandela. Uma típica comida de marrano português que é uma espécie de linguiça de alho, desenvolvida pelos cristãos novos e criptos judeus da Serra da Estrela para simular a carne de porco e escapar dos olhares investigativos da inquisição. Esse é certamente um elemento que conecta os sertões do Seridó, com seu marranismo atávico, ao norte de Portugal e seu cripto judaísmo.

Talvez seja a comida, que agrada ao paladar, o sentido mais conservador e nostálgico que cultivamos. Um prato típico é um signo muito interessante de pertencimento a um lugar. Percebi isso hoje mesmo, quando fomos filmar o meu depoimento para o curta de Carito, lá na Ribeira do Douro, perto da grande ponte de metal, bem ao lado de uma espécie de oratório público em que as pessoas acendem velas para as almas dos mortos da “tragédia das barcas”, um naufrágio que ocorreu quando a população da cidade tentou fugir para a outra margem do rio no tempo em que as tropas de Napoleão invadiram o Porto.

Nas margens daquele rio de águas geladas que desce das serras altas na fronteira com a Espanha e corre para o mar inquieto do norte de Portugal, percebi que há algo na geografia daquela cidade que me lembra Natal. O rio no meio, pontes ligando um lado à outro e o mar logo à frente, posto como uma janela para o horizonte do mundo. Como minha cidade, o Porto é também uma dessas cidades que corre na esquina do rio e do mar, mesmo que as águas de seu rio sejam mais tormentosas, escuras e frias do que as águas salobras, preguiçosas de calor, que espalham-se entre as duas bandas da minha cidade.

Depois que a gente gravou e eu fiz meu depoimento sobre os rios de Natal e do Porto que correm em sentidos opostos mas desaguam no mesmo mar, o Atlântico, a fronteira que nos une e nos afasta, sentamos em um pequeno café, na subida da ladeira que dá para a entrada da ponte, chamado “Hasta Publica”.

A senhora que nos atendeu parecia padecer daquele proverbial mau humor dos portugueses donos de pequenos restaurantes e depois que eu e Carito comemos nossa “francesinha” (um típico sanduiche do Porto), a senhora ofereceu a sobremesa. Carito, que parecia satisfeito com a festa de carne do típico prato portense, trazido por imigrantes portugueses que moravam na França na época da segunda guerra mundial, respondeu de pronto: “agora não”.

A mulher olhou irritada para ele e respondeu de supetão: “Não! Agora!”; trazendo logo em seguida dois pedaços de torta de amêndoas que nós não havíamos pedido. Meio constrangidos, sem entender bem a natureza da gafe cultural que tínhamos acabado de cometer, passamos a comer a torta.

Pensei no inicio que aquela torta fosse uma imposição do lugar, uma espécie de senha que o turista deveria provar para ser introduzido no mais íntimo da cidade. Como uma ginga com tapioca no mercado público da Redinha, a torta de amêndoas na ribeira do Porto subitamente se dissolveu na minha boca, abrindo a porta de alguma memoria escondida no sabor, de algum índice de um gosto esquecido que talvez tenha experimento na infância ou em alguma vida anterior, marcada de modo misterioso na tessitura dos meus genes.

Quando notou que havíamos terminado a sobremesa a mulher se aproximou da mesa e, novamente, de modo brusco perguntou: “satisfeitos?”. Carito disse rápido, logo na sequência: “muito bom” (e estava sendo absolutamente sincero); eu também emendei sem titubear nem querer ser gentil: “Ótimo! Não nos arrependemos de nada”.

Nem deu tempo de processar a mensagem e a senhora completou, com assertividade séria, quase ranzinza dos portugueses: “Aqui não se tem arrependimento! Ninguém se arrepende de nada!”.


Leia também: 14 fatos que unem Portugal a Natal – uma comparação galada

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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