TERRA ESTRANGEIRA: Maria do Brasil

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Buenos Aires – Argentina, 09 de Fevereiro de 2016

Ontem, antes de subir no avião que nos levaria de volta ao Brasil, pela janela do táxi que foi pegar a gente no hotel, pude ver, pelos gramados que margeavam a rodovia que nos levava ao aeroporto de Ezeiza, bem longe do furdunço da cidade, logo após o luxuoso centro de treinamento da seleção argentina de futebol, uma boa quantidade de carros parados.

As pessoas pareciam ter pego seus automóveis e saído da cidade para ocupar aquele gramado aberto entre aquelas árvores compridas que me lembravam pinheiros europeus. As famílias estendiam panos para deitarem e assavam carne em pequenas churrasqueiras portáteis enquanto as crianças corriam ao redor, jogando bola ou brincando de “tica” (quem é do século passado sabe o que eu estou falando).

Essa última imagem epidérmica de turista aprendiz, que retive desta curta estadia em Buenos Aires, me pareceu o equivalente a um “Domingo na praia” da tradicional família potiguar, mas com um clima temperado (apesar do calor), que dava a impressão final de estarmos em um país europeu.

Uma imagem bem diferente da que vi dois dias atrás quando pegamos um ônibus em direção a La Boca, o bairro onde fica La bomboneira, o mitológico estádio do Boca Juniors. No percurso o ônibus passou pela Plaza de Mayo, tomada pelas bandeiras dos partidos de esquerda, de sindicatos e de movimentos sociais que acampavam por ali, armando uma charanga do #ForaMacri.

Aquela era mais uma das imagens da cidade que reforçam o clima de polarização política no ar, algo muito semelhante ao que está ocorrendo no Brasil desde que o PSDB se recusou, na prática, a aceitar o resultado da eleição de 2014. Pela TV eu já havia sentido a beligerância latente, especialmente com as informações dos protestos e greves que se espalham pelo país, que padece com uma inflação de 40% ao ano e com o dólar batendo os 14 pesos. A interferência de Macri na economia, tentando entabular um choque neoliberal clássico, parece que agravou o cenário que transporta uma  rivalidade típica de um “River e Boca” para a arena política.

Puxei o assunto com o sujeito que trabalha no balcão do hotel e com um vendedor de pacotes turísticos de uma agência próxima ao cemitério da Recoleta. Ambos admitiam a tal crise, mas, enquanto o primeiro me garantiu que “bastou dois meses de governo para que este presidente acabasse com o país”; o segundo jurou de pés juntos que o país vive em crise há mais de dez anos, mas que agora com o novo governo “as coisas iam começar a melhorar”.

Se não parece haver uma maioria clara para um dos dois lados no quesito política, no campo da bola confesso que vi muito mais camisas do River Plate do que do Boca Juniors. Não sei se isso se deve ao fato de ter andado pela parte mais abastada da cidade ou se isso se deve à fase atual dos dois times, com o River recém campeão da libertadores.

O fato é que, na minha ida a La boca, o cenário urbano e futebolístico começou a mudar, com variações bem perceptíveis nas construções e no padrão luxuoso e modernoso dos prédios. Quando nos afastamos da Recoleta, Palermo e Puerto Madeiro, à medida em que nos aprofundamos nos arredores de La Bombonera, uma outra Buenos Aires começou a aparecer.

Como era feriado e as ruas estavam desertas, vimos apenas alguns moradores tomando vinho na frente de suas casas, ao redor do estádio, também com seu churrasco e suas flâmulas de futebol. Algumas famílias enchiam piscinas de plástico nas calçadas e tinha também muita gente sem camisa por causa do calor.

O cenário me transportou para os cortes da HQ de Will Einser, New York Big City, com aquele clima de autenticidade popular que pulsa das periferias das grandes metrópoles, mesclada com um colorido estranho, de um bairro entrecortado por cenários portuários que me lembrava, às vezes, guardadas as proporções étnicas, a zona Rocas-Ribeira em Natal ou mesmo a Cidade Baixa em Salvador.

Comenta-se em Buenos Aires que La Boca é um bairro perigoso e nas recepções dos hotéis avisam aos turistas com cara de gente da província (como eu por exemplo) que não é aconselhável andar pelas esquinas escuras e desertas daquela vizinhança durante a noite.

Mas a minha impressão, observando o bairro, é que há uma outra Buenos Aires por trás do ar monumental e grandioso que percorre essa cidade fluvial e plana que, às vezes, lembra o espírito imponente de velhas cidades imperiais europeias como Viena, por exemplo.

Aliás, há também, dentro das mitologias construídas sobre Buenos Aires e sobre a Argentina, a noção de que sua população é “europeia”. Um país sem negros ou indígenas, povoado por uma espécie de italiano, que fala espanhol e pensa que é inglês (pelo menos até a guerra das Malvinas).

De fato, há muito pouca negritude pelas ruas em que andei aqui em Buenos Aires. Se tomarmos alguns recortes da cidade, especialmente na parte que parece ser a mais rica, podemos até mesmo nos perguntar se estamos mesmo na América Latina. Por isso foi preciso vir aos arredores do estádio La Bombonera para entender que há uma  “cidade baixa” em Buenos Aires, mesmo numa área plana.

A zona proletária da capital portenha me fez ver, senão a África da diáspora negra, como na cidade baixa de Salvador, a marca da América do sol dos povos originários. Mesmo que exista uma certa vibe de periferia italiana (parecida com a que senti em Nápoles no finzinho do século passado), La Boca não esconde que a Argentina também é indígena e que Buenos Aires fica mesmo na América Latina.

Só não sei se minha mãe percebeu isso.

Ela nunca havia saído do Brasil antes.

Não que não gostasse de viajar. A vida da minha mãe, até a aposentadoria dela esse ano, foi a de viajar por todo o Brasil. Ela até nomeou o e-mail dela de “mariadobrasil”.

Não sei se você sabe, amigo velho, mas meu avô materno (Luis Augusto de Paiva) era motorista de caminhão, e o pai dele, Francisco Augusto de Paiva, que nasceu no final o século XIX, ganhava a vida como tropeiro, carregando sacas de algodão no circuito de rotas comerciais que ligavam Cajazeiras na Paraíba à Mossoró, no Rio Grande do Norte.

Minha mãe tem a viagem no sangue.

Trabalhando no Mobral nos anos 1970 cruzou o Rio Grande do Norte inteiro atuando no programa de alfabetização de adultos capitaneado pela professora Lurdinha Guerra. Junto com o TONUS (o grupo de teatro em que ela atuou na juventude) conheceu todos os municípios do estado em programas de extensão da UFRN que levavam espetáculos teatrais para o interior do RN. Trabalhando com educação de comunidades rurais e quilombolas desde os anos de 1990, viajou por todo o Brasil. Passou por cidades no interior do Maranhão e pelas serras dos sertões do Piauí (inclusive a famosa Guaribas do programa Fome Zero). Andou pelas matas do Acre, pelos cantos mais  distantes do planalto central, inundados de soja e pasto pra gado. Viajou todo o pantanal mato-grossense e transitou pela imensidão da Bahia, pelas montanhas de Minas e pelo curso do rio São Francisco. Passou dias e dias navegando em barcos dentro da floresta amazônica até achar, uma ou outra comunidade ribeirinha.  Foi assim que minha mãe conheceu, trabalhando com a Fundação Roberto Marinho, o coração do Brasil. Foi assim que ela saiu do seu sertão lá do pé da serra do Lima, no alto oeste potiguar, e mergulhou no sertão profundo, no interior mais distante desse continente em forma de nação.

Ela passava semanas e semanas na estrada e quando voltava para Natal, era  apenas para trocar a mala e botar a “roupa suja pra lavar”, pra retomar o caminho que a levava ao interior do país.

O irônico é que, tendo viajado por tanto tempo, cruzado distâncias continentais e conhecido lugares no Brasil que a grande maioria das pessoas sequer imagina que existem, essa tenha sido sua primeira viagem internacional.

Aliás, essa conexão atávica da minha mãe com o interior do Brasil acabou deixando ela um tanto quanto ufanista (pra não dizer xenófoba) em relação à Europa e sua influência colonial. O contato com povos originários e quilombolas incrementou a resistência sertaneja dela às influências estrangeiras, que vai muito além da sua paixão atávica pela comida do sertão e pelos objetos  (signos de sua infância na zona rural de Patu), que povoavam nossa casa no bairro do Mirassol, na virada dos anos 70 para os 80.

Agora que ela está aposentada e as viagens podem ser feitas sem ônus laboral, talvez dona Socorro possa ser mais condescende com os europeus e suas fantasias coloniais.

No fim das contas o bom de termos vindo todos pra essa Buenos Aires que se pinta de europeia mas que tem a América latina latente, explodindo pelas ruas de La boca, é que isso pode servir para ela como um preparativo homeopático para a viagem que pretendemos fazer no final do ano.

Em Dezembro planejamos atravessar o Atlântico com Dona Socorro, a Maria do Brasil, e levá-la para Portugal.

Espero que as semelhanças culturais da terrinha e o idioma lusitano possam tornar mamãe mais tolerante com aquilo que não é Brasil, mesmo sabendo que, para ela, o Brasil é o mundo.

NOTA ATUALIZADA DO AUTOR: infelizmente minha mãe não conseguiu atravessar o mar oceano e fazer a viagem para Portugal que estávamos planejando. Em Novembro de 2016 ela sentiu fortes dores abdominais e teve de fazer uma cirurgia de urgência no hospital da UNIMED. Descobrimos que ela tinha um câncer no intestino. Ela acabou falecendo cinco meses depois, em um sábado de aleluia, sem nunca ter cruzado o mar, mas tendo mergulhado, por toda a vida, nesse oceano chamado Brasil.

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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