TERRA ESTRANGEIRA: Comunista não… russo!

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Praga – República Tcheca, 20 de Abril de 2014

Ontem caminhamos pela Praça Venceslau, o coração político de Praga.

Uma grande rua de duas mãos com um largo canteiro no meio que se estende por uns dois quilômetros.

Naquele canteiro central os Tchecos lutaram contra os nazistas, engendraram sua primavera em 1968 e protestaram contra os russos, após a autoimolação com fogo do jovem estudante Jan Pallack, em 1969, em um ato definitivo de revolta contra a influência soviética. Ali também, no começo dos anos 90, o povo de Praga ocupou aquele canteiro central para concretizar o paradigma fundamental de todas as chamadas “revoluções coloridas” que viriam a se espalhar pela zona de influência soviética: a  chamada “revolução de veludo” que terminou por encerrar o modelo socialista; o que acabou levando embora, de quebra, o antigo país em que viviam e que se chamava Tchecoeslováquia.

A impressão que tive desse espaço histórico, onde as doutrinas políticas do século XX engendraram seus armagedons ideológicos, é de estar andando em uma grande alameda de shopping center a céu aberto.  Lojas de departamento, letreiros em néon com propaganda de marcas sofisticadas, cafés, lanchonetes e restaurantes onde se poderia comer todo tipo de comida (com exceção, obviamente, de tapioca e queijo de coalho, iguarias ainda imunes a globalização capitalista que dominou a Europa do leste após o colapso do bloco soviético).

Comer, aliás, tem sido um problema pra mim.

Com sete anos de vegetarianismo nas costas é difícil achar um prato tcheco que não leve porco. Por isso pensamos em voltar hoje à cidade velha, para visitar a Sinagoga Espanhola e o cemitério judeu em busca, tanto de antiquários que possam vender alguma coisa mais autêntica da cidade, fora do circuito turístico, quanto de algum restaurante que ofereça algo no cardápio que não seja feito à base de bicho morto.

Acabamos achando um restaurante italiano nas redondezas da sinagoga Staronová, o templo judeu mais antigo da Europa ainda de pé, erguido em meados de 1270. O lugar estava vazio, o que permitiu que a gente conversasse um pouco mais demoradamente com um casal simpático de mais ou menos nossa idade e que pareciam ser proprietários do local.

A mulher era de Praga, mas tinha ancestralidade alemã pelo lado paterno e italiana pelo lado materno, tendo passado parte da infância em Florença, o que a teria feito reconhecer o nosso português nos identificando à primeira vista como “turistas lusitanos” na cidade. O homem, por sua vez, me explicou que não era tcheco, mas sim “eslovaco”, ou seja, da banda mais oriental da antiga Tchecoeslováquia. O casal acabou nos fornecendo, entre um prato de macarrão ao molho de queijo e uma taça de vinho, algumas pistas interessantes para entender Praga.

A primeira pista tem a ver com a questão da influência germânica, que eu já havia notado pela arquitetura e pelo fato de ter lido quase tudo que podia sobre a vida e a obra de Franz Kafka. A marca cultural germânica traz uma distinção forte entre Praga e o resto da República Tcheca. O povo do lado oriental, já nos limites com a Eslováquia, seria, segundo nosso interlocutor, bem mais “eslavo”; enquanto os habitantes de Praga teriam essa conexão com a banda germânica da Europa.

“Quase todo mundo na cidade tem uma avó austríaca, ou um avô alemão” – eles nos asseguraram.

A segunda pista tinha a ver com o “socialismo”.

Enquanto procurava informações sobre cervejarias artesanais, o eslovaco acabou abrindo o jogo pra mim sobre o modo como a Plzensky Pradoj (a empresa que faz a Pilsner Urquell) comprou várias cervejarias artesanais após a abertura para a economia capitalista e se tornou uma mega indústria dominando o mercado local.

“Na época do socialismo as pessoas ganhavam uma permissão para arrendar do Estado um bar.” – ele explicou – “e cada bar fazia sua própria cerveja. Haviam muitos tipos diferentes. Hoje isso mudou”.

Senti que era a oportunidade para fazer a pergunta que eu queria fazer desde que cheguei na cidade.

“E o que as pessoas hoje acham do antigo socialismo? Hoje está melhor ou pior do que antes?”.

O sujeito ficou alguns segundos pensativo antes de me responder. Parecia estar buscando as palavras certas em inglês para não ser mal interpretado, ou mesmo tentando encontrar uma solução para uma questão que ele mesmo, talvez, nunca tivesse formulado plenamente e para a qual, provavelmente, nem mesmo houvesse uma resposta única.

O que ele tentou me explicar basicamente foi que as novas gerações, nascidas após a revolução de veludo, ou mesmo nos anos 80 do século passado, não tem a mínima ideia do que foram os tempos comunistas. Elas não estão nem ai para o passado, não fazem ideia ou simplesmente não se importam.

A nossa geração (que tem hoje por volta de quarenta anos), por sua vez, lembra da época do comunismo e não quer voltar aqueles anos de jeito nenhum; já a geração de nossos pais, que nasceram durante a guerra, cresceram nos anos 50, viram a primavera de Praga e protagonizaram a Revolução de Veludo, tem um estranho apego nostálgico aos tempos comunistas e uma sensação de terem sido enganados pelos políticos que prometiam, com a democracia liberal, uma melhoria no nível de vida da população e acabaram entregando um pacote neoliberal com desemprego, precarização da vida e desmantelamento dos mecanismos de proteção social herdados das décadas de influência socialista.

Sai do restaurante pensativo.

Se as impressões do meu informante estiverem corretas é espantosa a semelhança com o que a gente parece estar passando no Brasil em relação à ditadura militar. Desde que no ano passado eclodiram esses movimentos de protesto no país da Copa do Mundo, que tenho notado uma certa tendência, de alguns conterrâneos da geração de meus pais, especialmente médicos, a relativizar o regime de 64. “Não foi tão ruim assim”; “o regime só perseguia os marginais”; “a gente tinha mais segurança”; “não foi ditadura, foi ditabranda” e blá, blá, blá.

Será que estaríamos passando por um processo global de revisão da onda liberal que tomou conta do mundo na virada do milênio e desmantelou as ditaduras latino americanas com a mesma velocidade com que fez desabar o bloco soviético na Europa do leste?

As vezes sou tomado por esses sacolejos hegelianos que nos empurram em direção aos assombros da história, por isso insisti com Ana para atravessarmos a Ponte Carlos em direção a Malá Strana, para visitar alguns antiquários. Obviamente, apenas depois de bater o ponto turístico nos jardins do Palácio de Wallenstein e na Grande Catedral de São Vito, um gigantesco monumento  de mais de 1000 anos, cuja construção iniciou no fim da idade média, atravessou o renascimento e o barroco, pra ser concluída em 1928, com um retorno nostálgico ao gótico medieval em plena era das vanguardas modernas. Ou seja: uma feijoada arquitetônica com tempero tcheco.

Com as pernas já bem doloridas após descer e subir as ladeiras de Malá Strana (uma espécie de Pelourinho barroco da Europa do leste) encontramos um antiquário bem perto de uma estação de VLT.

Você deve ter imaginado, amigo velho, que eu, que sempre tive a nítida sensação de ter nascido na época errada, me senti como um pinto no lixo diante de tanto livro velho. Encontrei logo uma edição de 1921 publicado pela Editora Judaica de Berlim, do livro Die Judische Literatur, de Simon Bernfeld, por 500 coroas, e de quebra achei o que parecia ser um guia turístico de Praga, editado nos anos de 1950, com velhas fotos em preto e branco.

“Mas está tudo em Tcheco!”, disse Ana querendo saber por que danado eu compraria um livro velho escrito num idioma que eu nunca aprenderia. Foi então que eu mostrei no fim do livro, anexado junto a última capa, um papel dobrado. Quando desdobrei o papel ela viu de que um lado tinha um mapa da antiga Tchecoeslováquia e do outro um Mapa da Europa, em escala, datado de 1972.

Com o nome de todas aquelas cidades e países em Tcheco ela me perguntou: “E você não acha um mapa desses em português lá no sebo de Vera, não?”.

Foi então que eu apontei para um detalhe que ela não tinha percebido.

Marcado com uma caneta vermelha, justo no centro daquele mapa da Europa de 1972, alguém havia traçado um limite, bem no meio do continente, separando o lado Ocidental do lado Oriental. De um lado a Áustria e a Alemanha Ocidental; do outro a DDR (antiga Alemanha oriental), a Tcheco-Eslováquia, a Hungria e a velha Iugoslávia.

“Lá em Vera a gente não arruma um desses não”.

Ana entendeu a importância histórica do documento e resignou em abrir mais um “espaçozinho” em nossa mala de retorno para meus livros velhos.

Mas, quando a gente já estava pagando as compras eu encontrei outra coisa que despertou meus impulsos consumistas mais primitivos.

Lá estava ele. Solto já ao lado da mesa do caixa. No meio de Jarros, quadros, caixas de músicas e velhas frasqueiras de madames Tchecas do tempo da guerra.

Um cartaz colorido, em muito bom estado, provavelmente do começo dos anos 50, com letras em russo, do… camarada Stálin!

“Ah… não. Ai é demais” – Ana disse – “Você vai levar isso?!?”.

O sujeito do caixa, com uma longa cabeleira negra e um bigodão anos 70, que o fazia estranhamente parecido com Tommy Iommi, do Black Sabbath, olhou pra gente com aquele ar de quem estava ciente da treta doméstica que a disputa pelo espólio da velha herança soviética estaria provocando naquele casal de “turistas lusitanos”.

A coisa piorou quando Ana perguntou o preço do cartaz (que equivalia a um euro). “Você vai pagar um euro nisso? Pra pendurar na parede lá de casa?”.

“Realmente” – o sósia de Tommy Iommi interveio – “Um Euro é muito dinheiro. Ele não vale tanto”.

“Entendo.” – tentei concertar a gafe – “um velho líder comunista não vale um euro”.

“Comunista não… russo!” – o vendedor encerrou a questão antes de dar um desconto de 50% no preço do cartaz.

Sai do antiquário com a relíquia que daria de presente para meu tio Antônio Capistrano, o último “comunista old school” da família (pra quem não sabe, os “Capistrano” tem uma longa tradição de militância no partidão, diga-se de passagem).

No fim do dia, atravessando a Ponte Carlos de volta à cidade velha já escurecida, assolada com todos esses fantasmas que assombram essas cidades milenares de uma Europa envelhecida, depois das conversas que tive hoje (mesmo sabendo que o camarada Stálin era georgiano e não russo), acabei por ter a sensação nítida de que, no palco da história e no campo de jogo das ideologias, a despeito de nosso insistente apego a uma ou outra doutrina política qualquer, a geografia sempre ganha de goleada.

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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