TERRA ESTRANGEIRA: Balançando na beira do abismo

cabo da roca

PIX: 007.486.114-01

Colabore com o jornalismo independente

Sintra – Portugal, 13 de Julho de 2006

Depois de três dias de um céu nublado, de uma neblina fria e de um vento úmido que nos obrigou a pôr casacos para suportar os 19 graus no pé da Serra de Sintra,  com tremor e ranger de dentes, o socorro finalmente veio da África.

Embalados por uma massa de ar quente que atravessou o Saara os termômetros em Portugal se agitaram. Segundo anunciou a televisão, em algumas estações do comboio (nome que os portugueses dão para os trens) que vai de Sintra à Lisboa, a temperatura poderia chegar a 38 graus. Um micro-ondas que faria jus a uma temporada de Dezembro na beira do açude de Pau dos Ferros, diga-se de passagem.

Ou seja, tudo indicava que aquele seria o tempo perfeito para uma praia.

Como se estivéssemos fugindo da última grande glaciação, pegamos a estrada da serra no sentido sudeste, em direção à Cascais e Estoril.  Logo, logo, o que parecia ser um passeio simples ganhou, para esse pobre motorista de província, ares de terror claustrofóbico. Isso porque se você, amigo velho, já achou a estrada entre Sintra e Almoçageme estreita, espere para andar na estrada que dá acesso ao farol da Roca! Em alguns lugares, com mão dupla, só há espaço para se passar um único carro. Como a pista é cheia de curvas eles botam espelhos para que você, em um derradeiro momento de terror, veja em quem vai bater.

Eu confesso que uma das coisas que mais me deixa possesso quando estou dentro de um carro é dirigir em lugar estreito ou ter de estacionar no Alecrim (bairro comercial mais popular de Natal). Não há coisa pior do que se enfiar com um veículo, por menor que ele seja, em uma viela com dimensões medievais, construída para passar um comboio de burros. Minha ideia é simples, se não cabem dois carros numa pista passem uma corrente e mandem as pessoas andarem a pé.

Minha mãe, quando era criança, andava a pé uma légua e meia do sítio em que morava para ir à feira de Domingo em Patu, e nem por isso deixou de gostar de viajar. Porque então danado a gente precisa se enfiar com um carro de sete lugares numa pista feito essas, para se chegar na porra de uma praia? Nem o mar de Pipa merece um sofrimento desses.

Mas vá lá… eu sei, eu sei. Tinha algo mais do que simplesmente o mar da costa portuguesa pra gente ver.

O cabo da Roca é o ponto mais ocidental do continente europeu. Lá tem uma placa aonde se lê: “A Europa acaba aqui”. Também tem uma outra que diz: “Aqui acaba a terra e começa o mar”.

Algo bastante impreciso porque, afinal, existe mais chão entre o Atlântico e o Pacífico, do que supunha a vã cartografia dos europeus medievais. Os próprios portugueses provaram isso.

É fato que para os geógrafos ingleses, especialmente após o artigo famoso de H. J. Mackinder em 1904 (The Geographical Pivot Of History)  é muito atrativa essa ideia de que a massa euroasiática (com a África anexada de brinde pela península do Sinai)  seria uma espécie de heartland, um núcleo central do planeta. A zona geoestratégica mais importante do globo.

Mas pra mim, que vivo no “extremo ocidente”, nessa América do Sul de veias abertas com um sol pra cada cabeça, confesso que me senti desconfortável em saber que meus antepassados lusitanos imaginaram em algum momento que a terra acabava no cabo da Roca.

E não é a toa que eles pensassem isso porque o farol que foi construído lá fica em cima de um penhasco rochoso enorme que fornece àquele mar aberto e nervoso, uma incontestável fragrância abissal.

Penso que deve ter sido mesmo ali no Cabo da Roca, que os navegadores portugueses começaram a cultivar esse desejo pouco prudente de perscrutar o abismo. Sim, porque, na cabeça da gente daquela época, aquilo ali só podia ser o abismo. O grande buraco. A imensa fossa. A gigantesca garganta aberta do leviatã. A vala monstruosa que guardava os restos da batalha cósmica na qual o Deus do gênesis teria trucidado a serpente marinha, repetindo o mito cosmogônico original do Enuma Elish, no qual Marduk esquarteja sua mãe Tiamat, separando o céu do mar.

Também tem alguma coisa épica no vento que bate em cima do cabo da Roca. Aquilo ali lembra mesmo o cenário de um imenso apocalipse. Como se toneladas de rocha tivessem sido cuspidas em direção ao mar, naquele penhasco de 140 metros, após algum cataclismo geológico desses de rachar placas tectônicas.

As rochas fraturadas, o vento frio, a umidade salgada, as ondas explodindo violentamente sobre as escuras massas minerais. Tudo aquilo me dava a nítida sensação de estar balançando na beira de um abismo, dentro de um quadro de Willian Turner (só que com sol).

Como era de se esperar não conseguimos ficar muito tempo tomando aquela maresia fria lá de cima e nos dirigimos à Cascais, pra comer alguma coisa, sem esquecer de, no meio do caminho, dar uma parada na praia do Guincho.

Ali eu tive um primeiro grande impacto, que provavelmente vai redimensionar para sempre o meu conceito de “praia”.

Primeiro que os restaurantes do lugar não permitem a entrada de pessoas molhadas ou sujas de areia. Era como se a praia pudesse ser posta “entre parênteses”, o que é de certa forma, uma ofensa pra quem, como eu, foi criado almoçando caranguejo nas barracas de Ponta Negra ou mesmo ginga com tapioca no mercado público da Redinha. Só esse fato já é suficiente para um “revestrés” antropológico no juízo.

Depois tem o outro problema que é o do fuso horário.  Para nós, com os corpos acostumados a dias e noites de uma estabilidade doentia, todas com a mesma duração, tínhamos a impressão que a hora do almoço no verão português nunca batia com a posição do sol no céu.  Por isso, sem que a gente se desse conta, apesar de ainda parecer meio dia,  já era três da tarde e todos os restaurantes estavam com a cozinha fechada. Essa gafe cronológica fez com que tivéssemos de dar meia volta e buscar um supermercado  ou uma loja de conveniência aberta para dar de comer às crianças.

Acabamos indo parar em Colares na Praia das Maçãs.  Um lugar com casas branquinhas penduradas em penhascos rochosos que me fizeram lembrar a minha estadia na Grécia em 1999.

Perto da areia haviam dois bares que não sei porque me lembraram o Morro de São Paulo, na Bahia. Acho que mais pelo público do lugar que me pareceu a mesma juventude bem típica desse começo de século, que a gente vê turistando na costa do nordeste, meio rasta, meio punk, meio clubber, meio novela das oito. Todos espalhados pelas cadeiras tomando uma “imperial”, fumando sem parar e ouvindo  L.A. Woman, a faixa título do último disco do The Doors, tocada pelos alto falantes de um dos bares.

Então me veio uma percepção inquietante: “Por que ninguém está dentro d´água?”.

Olho o mar e, com meus 32 anos de contato quase diário com a água salgada, aprendendo a observar seus caprichos e suas variações de humor, percebo que aquilo é um senhor mar aberto. Um caldeirão de correntes de retorno sem nenhum bom arrecife, sem nenhum parrachozinho que possa impedir que o atlântico selvagem leve um banhista displicente até a costa da Bretanha ou o estreito de Gibraltar.

Mas eu não atravessei o atlântico, em pleno verão, pra ficar sem pôr os pés no mar de jeito nenhum! Nem que seja na beirinha.

Então, eu e Uriel (meu filho mais velho) tratamos de colocar roupa de banho e caminhar em direção ao mar pra sentir finalmente a espuma e o sal daquelas águas, feitas com as lágrimas de Portugal.

Não sei, amigo velho, se você já mergulhou os pés numa bacia de gelo alguma vez na sua vida. Eu costumava a fazer isso quando era criança, para testar o limite da dor e atingir o barato que vinha depois, quando o pé começava a ficar dormente. Mas eu era criança e não tinha formulado ainda o conceito cirúrgico de amputação de membros inferiores por necrose causada pela exposição excessiva a baixas temperaturas.

Quando a primeira onda grande veio eu e Uriel gritamos.

O gelo subiu pelos pés e veio bater no meio da canela, fazendo tremer o osso e empurrando a gente pra fora da zona da água em disparada, em meio a gritos e gemidos.

Se o ar quente daquele verão de 38 graus vinha da África eu agora tinha certeza que a água daquele mar vinha do ártico.

Um choque térmico desestruturante, que, com a força de um despertar espiritual me deu a noção absoluta de que nenhum mar é igual a outro e de que nessa viagem, com certeza, a minha relação com a água salgada iria ser meramente contemplativa.

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

WhatsApp
Telegram
Facebook
Twitter
LinkedIn

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Mais lidas da semana