Entre as sete pessoas visíveis na fotografia, Yuri Rodrigues é a da ponta esquerda, em primeiro plano. Vestindo uma camiseta de botão com uma estampa em tons de rosa e roxo, óculos de grau, no rosto, e um brinco discreto, o jornalista chama a atenção por manter os seus olhos fixados em algo à sua frente. O que ele assistia atentamente era o espetáculo A Casatória C’a Defunta, obra idealizada e encenada pela Cia. Pão Doce, grupo de teatro de Mossoró/RN.
Mas não só a peça fazia parte da Companhia. O espaço onde Yuri e todas aquelas outras pessoas estavam, assim como o motivo do encontro, também. Era noite do dia 27 de março de 2024, uma quarta-feira, e dezenas de pessoas – de todas as cores, gêneros, classes, profissões, corpos, idades, costumes – se faziam presentes no Espaço Cultural Teatro de Quintal, sede da referida Cia., no bairro Alto de São Manoel, para prestigiar o grupo na abertura do projeto Pão Doce 20 Anos, que, à época, era notícia recente na boca do povo.
O projeto só foi possível a partir do apoio incontestável e fomento da Fundação Nacional de Artes, por meio do programa FUNARTE de Apoio Às Ações Continuadas 2023, e nasceu para comemorar o aniversário de duas décadas de atividade ininterrupta do grupo. Era quase impossível escolher apenas um dia para celebrar um feito como esse. Por isso, vinte anos transformaram-se em um.
O Pão Doce 20 Anos aconteceu ao longo de todo o 2024, com ações das mais variadas linguagens e formatos. Yuri foi um que fez questão de comparecer em quase todas. “Como eu sempre estou ligado na programação da cidade, eu vi algumas pessoas compartilhando que ia ter uma ação lá no Teatro de Quintal. Fui e amei. Depois disso, continuei ligado em tudo o que acontecia por lá, oficinas, palestras, e sempre que eu podia, eu ia”, explica o comunicador.
E ele não foi o único. Era possível encontrar rostos familiares frequentemente em cada atividade realizada. E aqueles que surgiam pela primeira vez, tornavam-se comuns nos encontros seguintes.
Muito pode ser respondido a partir dessas observações. Se não respondido, ao menos novas perguntas são desenvolvidas. Mas, principalmente, o que se compreende com um ano inteiro de atividades de cunho sócio-educa-culturais gratuitas, voltadas para uma população, é que as pessoas de Mossoró consomem arte. E mais do isso, pedem por arte.
Ao todo, foram realizadas 13 atividades, começando em março e finalizando em setembro. Entre elas, apresentações de espetáculos da Cia.; oficina de tranças afro, com Simone França; oficina de narrativas e escritas, com Daniel Guedes; uma palestra e workshop denominados “Como Brincar e Estimular a Criança com Autismo”, com Marjoreen Paiva; o espetáculo “De Corpo Inteiro” e a oficina “Dançar Waacking”, ambas, com a bailarina Ariadna Medeiros; oficina de lambe-lambe, com Danielle S. Brito; palestras sobre saúde bucal, ministradas pela Dra. Anna Gabriela, uma voltada para a comunidade LGBTQIAPN+ e outra, para crianças; o 1º Cine Quintal, mostra de cinema com filmes produzidos por mossoroenses; oficina de musicalização infantil, com Bruno Hermínio; e o 1º Festival de Cenas Curtas.
Isso sem contar as outras atividades adjacentes que contribuíram, também, para o projeto dos 20 anos do grupo, como, por exemplo, um Café com Prosa extra – projeto já existente da Cia. Pão Doce que promove encontros entre artistas e não artistas, reunindo o melhor do café e da prosa num só lugar.
Mônica Danuta (a última da direita, na foto acima), atriz e uma das coordenadoras do projeto, enxergou o Pão Doce 20 Anos como uma possibilidade de mostrar à população que um grupo de teatro pode fazer muito mais do que exclusivamente montar espetáculos, circulá-los e apresentá-los; mas, também, produzir, no sentido mais amplo da palavra, e ainda, fazê-lo com o objetivo de atingir novos públicos para além dos já de costume.
“Como que a gente chega para uma classe de professores? De pais? De cuidadores de crianças autistas? Como que acessamos essas pessoas para a gente também entender a nossa forma de trabalho? O que elas estão falando? O que elas estão querendo?”, questiona-se a artista.
São perguntas que se confirmavam a cada nova ação do projeto. Perguntas essas que, de tão presentes, saltaram do mundo das ideias para se concretizarem no mundo real. Um exemplo disso é a própria estrutura da sede do grupo. A partir do Pão Doce 20 Anos, o Espaço Cultural Teatro de Quintal tornou-se ainda mais inclusivo no quesito estrutural.
As indagações acerca da democracia de fato e a vontade de transformar o ambiente e a programação integralmente acessíveis a todos os públicos fizeram com que a casa passasse por uma reforma, tornando todos os cômodos de usos possíveis por qualquer pessoa, sem ou com deficiência.
A plateia sinalizava, a todo momento. E não só com relação à acessibilidade concrética, mas também às oportunidades de se ver como público-alvo possível nas oficinas promovidas pelo projeto. Mães, por exemplo, que se questionavam quando teriam uma atividade voltada especialmente para elas. De acordo com Mônica, esse pedido foi anotado e, caso o projeto seja renovado, o grupo já analisa uma forma de acrescentar uma ação específica para essas mulheres.
Um dos principais objetivos do Pão Doce 20 Anos era inserir a comunidade do bairro nos encontros realizados na sede e fazer com que os moradores da região entendessem que aquele espaço também era de direito deles. Isso, talvez, tenha sido um dos pontos que tenha posto mais os coordenadores para refletir, porque com uma programação gratuita, com ações interessantes, no mesmo quarteirão de diversas outras casas, mesmo assim, muita gente ainda tinha receio de aparecer. “Então, como que a gente chega para essas pessoas?”, pergunta-se Danuta.
A atriz diz que, no final, tudo isso tornou-se um aprendizado de fortalecimento enquanto artista e observadora da comunidade. Mas ela garante que o projeto teve uma certa evolução nesse quesito. As visitas paralelas da Pão Doce nos grupos do bairro, tipo o CRAS, e na Escola Municipal José Benjamim (localizada próxima ao Espaço), somadas à insistência positiva dos artistas de quererem mostrar que tudo aquilo ali também era de acesso de cada morador, fizeram com que algumas pessoas criassem coragem de atravessar a porta da sede.
Uma delas foi Goreth Coelho[1], que na primeira atividade do projeto, transformou aquele espaço no quintal da sua própria casa. Mas, já que as pessoas têm dificuldade de adentrar, Mônica, atriz da Cia., chegou a uma conclusão: “nossa próxima edição vai ser do lado de fora”.
O Pão Doce 20 Anos mostrou, também, que a população de Mossoró está carente de apresentações culturais. Para Danuta, muito disso se deve à falta de espaços artísticos na cidade atualmente, principalmente após os fatos que fizeram os dois teatros estarem desativados no momento – o Teatro Lauro Monte Filho, por estar sendo transformado em Centro Cultural Banco do Nordeste, e o Teatro Municipal Dix-huit Rosado, por ter que passar por adaptações na sua estrutura devido a um princípio de incêndio sofrido no início do ano.
Aliás, por causa disso, para Yuri, o espaço da Cia. foi o que deu uma esperança para a arte em 2024: “com dois teatros fechados, o teatro de quintal se fez um ambiente rico e florescente pra mim”, comenta o jornalista.
Isso é um fato que merece atenção. Mossoró é um município conhecido por ser polo na cultura e na arte, com profissionais do teatro, da dança, do cinema, da música, das artes visuais, do circo, entre outras linguagens, singulares e admirados em todo o Brasil. Mas o alimento do artista é a plateia, e políticas que promovam e estimulem a formação de público é tão imprescindível quanto a geração de novos fazedores de cultura. Uma coisa leva a outra, e vice-versa.
Percebe-se, através do projeto da FUNARTE, que os jovens (entre crianças e adolescentes) estão se mostrando mais ativos nas programações culturais, consumindo as atividades que tenham relação com as suas percepções e tempos de vida. O audiovisual e a musicalização infantil, segundo Mônica Danuta, foram exemplos visíveis disso.
A pergunta que fica é: o que fazer para que essa procura também se estenda às outras ações, às outras linguagens, mantendo o público fiel ao consumo de arte em Mossoró? O que fazer para que os mossoroenses voltem a escolher assistir a um espetáculo de dança, de teatro, como programa? É por meio de projetos como o Pão Doce 20 Anos que vamos compreendendo este cenário.
E para manter esse estudo a um prazo maior, nada melhor do que uma nova edição do projeto, não é mesmo? A Cia. já se organiza para tentar uma continuidade da programação. Seja ela através da FUNARTE ou por outros meios de incentivo. Para Mônica, seria interessante que o projeto conseguisse algum apoio do setor público da cidade também, uma vez que o projeto acaba fortalecendo a cultura local. No entanto, ela acha isso difícil de acontecer.
Para uma possível próxima edição, a ideia é alcançar novos públicos, além dos que já frequentam o espaço. Para isso, serão pensadas novas ações, oficinas, espetáculos e debates, a fim de diversificar ainda mais o leque de possibilidades por lá, e, consequentemente, mostrar que todo mundo pode e deve consumi-lo.
Seja no que passou ou no que ainda virá, o que fica do Pão Doce 20 Anos é o brilho nos olhos de todos e todas aquelas que participaram, entre os que estavam à frente das oficinas, da tradução em libras, da equipe de frente, dos pedreiros, do vendedor de pipoca, dos integrantes da Companhia e, sobretudo, da plateia. Talvez a recompensa maior do que o aplauso, para um artista, seja a possibilidade de ver aquele rosto familiar novamente no próximo espetáculo.
Diante de tudo, não há como não concordar com Yuri Rodrigues, quando ele diz que “a arte transforma, né?, e a responsabilidade, o cuidado e a expressão artística inigualável com que a Cia. Pão Doce expõe sua arte ao mundo faz a gente querer sempre mais. Para ele, os espetáculos, os intercâmbios e até as surpresas entre a programação “nos levam a acreditar na arte como experiência social, sensorial e de afeto. Espero que possamos ter cada vez mais disso na cidade”.
[1]Goreth Coelho é a terceira mulher evidente da foto, da esquerda para a direita. Goreth veste uma camisa preta, está de óculos e tem o cabelo preto e solto, escorrido para as costas. Goreth está com a mão apoiada no rosto.