Sobre a morte, mas também sobre a vida

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Tenho pensado muito sobre a morte nos últimos tempos. Não são pensamentos negativos do tipo medo de morrer ou de perder entes queridos, por exemplo. Nada disso. Pelo contrário. Pensar sobre a morte é também, e principalmente, pensar sobre a vida. É pensar sobre a vida que estamos levando, ou mesmo sobre a vida que gostaríamos de estar vivendo. Ou ainda, quem sabe, sobre a vida que pretendemos viver no futuro. O filósofo chinês Confúcio resume bem essa relação entre vida e morte e nos dá uma receita no mínimo desafiadora: “Aprende a viver como deves, e saberás morrer bem”.

E foi imersa nessas reflexões, e depois de uma conversa com meu amigo Francisco Isaac, historiador e editor, que decidi escrever esta crônica e partilhar minhas inquietações sobre o tema. Um tema que aliás é tabu em nossa sociedade. Isaac, por exemplo, não gosta de falar sobre o assunto e sempre pede para mudarmos o rumo da prosa quando estamos conversando com nosso grupo da faculdade sobre doença, morte e temas afins. O grupo é formado por Luana, João Paulo, Elindaelma, Karlos, Paulo e Eduardo e se reúne quase todo dia pra tomar café e prosear nos intervalos das aulas do curso de Biblioteconomia da UFRN. As pautas são sempre muito interessantes. Aliás, esses momentos são um bálsamo nos dias atribulados. Momentos sagrados que dão um novo significado ao nosso cotidiano. Nosso grupo é sinônimo de acolhimento.

Em nossa última conversa sobre o tema, por exemplo, abordamos a partida precoce do ativista, ex-vereador e ex-deputado estadual do Rio de Janeiro, David Miranda, 37 anos, que faleceu no mês de maio, depois de ficar nove meses internado. Tudo começou com uma infecção gastrointestinal, que evoluiu para uma pancreatite e depois para uma septsemia (infecção generalizada), agravando seu quadro de saúde.

Além de político, David Miranda foi um ativista pelos direitos da comunidade LGBTQIA+ e atuante no movimento negro. “Preto, favelado e LGBT”, era assim que ele se descrevia, com o orgulho de quem sabia as pedras que precisou tirar do caminho para conseguir chegar onde chegou.

Durante o mandato de vereador, foi autor da lei que garantiu o uso do nome social por travestis e transexuais no âmbito da administração municipal, entre mais de dez normas das quais foi autor ou coautor. Em 2019, David assumiu uma vaga de deputado federal, após Jean Wyllys deixar o Brasil por receber ameaças de morte.

Ficamos sempre muito comovidos perante uma notícia de morte, especialmente quando se trata de uma pessoa jovem, cheia de planos e uma com vida inteira pela frente, como foi o caso de David Miranda, que deixou o marido, o jornalista Glen Greenwald, e três filhos adolescentes. São inúmeras as questões que invadem nossa mente em um momento como esses. Uma delas é esta: poderia ter sido eu.

Quando penso que eu poderia estar no lugar daquela pessoa que deixou a vida tão cedo, algumas questões começam a me incomodar e me fazem pensar, também, no que estou fazendo da minha vida. Que tipo de vida estou levando? Estou cuidando da minha saúde tanto quanto deveria? Estou trabalhando demais? E aquele trabalho voluntário/projeto social prometido há tempos, quando irei começar? Quanto tempo tenho dedicado aos amigos, à família? Tenho dedicado uma parte do meu tempo a atividades que me fazem relaxar ou passo 24 horas focada no trabalho? Será que estou passando muito tempo nas redes sociais? Será que vale a pena continuar vivendo assim ou devo desacelerar e cuidar um pouco mais de mim, da minha saúde física e mental?

O caso de David me fez lembrar a história de Natália Nobre, uma amiga da faculdade de Letras que partiu em 2022 depois de uma longa batalha contra o câncer. Além da leucemia, Natália foi diagnosticada com um linfoma raro, Síndrome de Sézary, que a levou a fazer uma vaquinha na internet para custear a estadia em São Paulo enquanto fazia o tratamento com fotoférese extracorpórea (o objetivo do tratamento é destruir células do linfoma e aumentar a resposta do sistema imunológico do corpo contra elas). Um período em que Natália enfrentou muitas dificuldades financeiras porque partiu com o marido e os três filhos para a capital paulista.

O apoio dos amigos e familiares foi além da questão financeira. Uma campanha divulgada nas redes sociais levou muita gente a doar sangue para Natália. Gesto que nos faz lembrar da importância dessa prática para pacientes que realizam cirurgias e/ou têm doenças raras, vítimas de queimaduras, de acidentes automobilísticos etc. Aliás, esse é um tema que gostaria de abordar em outra crônica. E por falar em solidariedade, essa era uma característica marcante de Natália. Seu amigo desde a faculdade, Willian Brenno, professor de Língua Portuguesa do Instituto Metrópole Digital/UFRN, lembra, comovido, a generosidade dela e afirma que Natália foi uma das pessoas que mais o ajudou na vida. Essa confissão foi feita enquanto conversávamos na copa do IMD, degustando o café de Lécia, nossa copeira e amiga que está ali para nos receber com um sorriso, um abraço. Ressaltou ainda que ela estava sempre disposta a ajudar quem quer que fosse, que fazia o possível para atender as necessidades dos seus e não media esforços quando o assunto era o bem-estar de um amigo ou de um familiar.

Natália tinha 37 anos e, assim como David Miranda, também deixou o marido e três filhos. As três crianças são sobrinhos biológicos de Natália que ela adotou com o marido. Igor Gacheiro, que é professor de Sociologia no IFRN, lutou com todas as forças enquanto Natália esteve ao seu lado. Foi um grande companheiro e continua sendo um pai amoroso e dedicado aos filhos. Ela certamente partiu mais tranquila por saber que seus filhos estavam amparados e seriam cuidados por um pai zeloso e presente. O apoio de alguns amigos, como Willian Brenno, foi e continua sendo fundamental na jornada de Igor.

Como falei no início desta crônica, o tema da morte me interessa muito, e as reflexões que surgem estão baseadas também em leituras e filmes que abordam o tema, por exemplo (preciso ler mais sobre o assunto e quero mergulhar em textos filosóficos e também da área de psicologia/psicanálise, especialmente). A propósito, recomendo a leitura de dois escritores que muito me cativaram desde o primeiro contato com suas obras. Estou falando de Drauzio Varella e seu livro “Por um fio” (Companhia das Letras, 2004), e de Ana Cláudia Quintana Arantes, e suas obras “A morte é um dia que vale a pena viver” (Sextante, 2022) e “Histórias lindas de morrer” (Sextante, 2020).

Também recomendo a leitura de “A morte é uma festa”, de João José Reis, sugerido por Francisco Isaac, e “Enquanto eu respirar” (Sextante, 2019), de Ana Michele Soares, indicação de Marília Silveira. Leitora apaixonada e profunda conhecedora da arte literária, Marília é uma psicóloga que usa a literatura como aliada no processo terapêutico de alguns pacientes. Ela está sempre partilhando com os amigos/seguidores suas experiências literárias. Sou uma grande admiradora do seu trabalho, que acompanho pelas redes sociais.

Toda essa reflexão e aquela conversa com Francisco Isaac me fizeram lembrar as palavras de Rubem Alves, que fala desse tema de uma forma sensível e inspiradora. Para o educador e psicanalista, “A morte e a vida não são contrárias, são irmãs. A ‘reverência pela vida’ exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir”.

Andreia Braz

Andreia Braz

Escritora e revisora de textos.

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4 Comments

  • Andreia Braz

    Ana Cristina,
    agradeço pela leitura da crônica e pela partilha de uma reflexão tão sensata e necessária sobre o tema.
    Não devemos temer a morte, mas nos preocuparmos com a vida que estamos levando. Essa tem sido a minha filosofia.
    Agradeço também por acompanhar nosso trabalho aqui no Papo Cultura, espaço democrático e múltiplo onde encontramos diversos tipos de texto sobre os mais variados assuntos.
    Abraços.

  • Andreia Braz

    Meu caro amigo José de Castro,
    você é um dos meus leitores mais assíduos, e também um dos amigos que apoiam e incentivam minha produção literária, e sou muito grata por isso. Assim como agradeço pela sua amizade e afeto.
    Agradeço também seus votos de felicidade e de uma vida longa. Também lhe desejo o melhor que a vida pode oferecer.
    Fico feliz por saber que essas reflexões sobre um tema tão pouco discutido tocaram seu coração.
    Abraços.

  • Ana Cristina Cavalcanti Tinôco

    Parabéns Andreia. Excelente crônica. O medo da morte parte do desconhecimento sobre ela. Daí a necessidade de buscarmos esse conhecimento. Texto primoroso. Leitura edificante.

  • Excelentes reflexões, Andreia… Gostei demais! Meu abraço apertado, desejando que você tenha uma longa vida, com muita saúde e inspiração, para seguir nos presenteando com textos dessa magnitude… Gratidão sempre!

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