Fora do sentido mais estritamente geográfico, é evidente para todos que nele vivem que o Nordeste é uma ideia. O imaginário propagado, desde que o Brasil se tornou Brasil, do que é essa ideia é cercado de preconceito. As origens desse preconceito ou desse imaginário pouco importam porque eles já estão enraizados na cultura brasileira; foram difundidos através da mídia, dos livros didáticos, das novelas, dos filmes, de um discurso colonial e pequeno burguês que exalta o Sudeste como ente positivo e o Nordeste como ente negativo, em seu contraste. Nesse discurso, a relação é estabelecida: se o Sudeste é rico, o Nordeste é pobre; se o Sudeste é inteligente, o Nordeste é burro; se o Sudeste é farto, o Nordeste é escasso; etc.
Como reflexo de nossa época de movimentos sociais fervorosos, a ideia do Nordeste está sendo revista e levada para fora de uma perspectiva tão marginal e estereotipada, de modo lento e gradual. Nesse princípio de século XXI, o Nordeste é, além do que fora dito acima, praia, sol, coqueiros, culinária, artesanato, monumentos históricos, etc., etc., etc. Para o turismo e a economia de algumas cidades, principalmente aquelas à beira-mar, esse novo estereótipo é excelente. Ele traz dinheiro e atenção de quem tem sotaques diferentes e os bolsos cheios. Porém, esse discurso atualizado perpetuado por companhias de viagens e programas de auditório da Rede Globo não faz jus â principal vítima desse processo de simplificação, o nordestino.
Aqueles que vivem nesse pedaço de Brasil que se convencionou a chamar de Nordeste compreendem a pluralidade e as potencialidades deste local. Como prova disso, está a arte nordestina. Cada novo artista em cada novo trabalho, escolhe um recorte específico desta ideia que é o Nordeste e o explora dentro de sua própria singularidade e sensibilidade. Dessa forma, as expressões artísticas não propagam um nordeste, mas múltiplos. No Rio Grande do Norte, por exemplo, na literatura, há o recorte de Nei Leandro de Castro na construção de um RN fantástico, repleto de referências clássicas, em As Pelejas de Ojuara, o Dom Quixote nordestino. Em contraste ao Rio Grande do Norte rosa e amarelo dos quadrinhos do apaixonado Arlindo, feito pela Ilustralu, e ao narrado pelo olhar de uma criança, repleto de amizades inesperadas que surgem como fuga de um ambiente opressor e violento, de Antes que o Universo nos Destrua, de Gabriel Dantas. Em oposição à urbanidade de Carlos Fialho, em A Noite que Nunca Acaba, e ao esoterismo de Marcos Guerra e Will Silva, em O Reinado de Carcosa.
Em meio a todas essas particularidades e nuances que compõem uma nova ideia de Nordeste, dentro do recorte dos norteriograndenses, com um olhar atencioso aquilo que o Nordeste é como sentimento, como vida, surge Sina, de Márcio Benjamin e com ilustrações de Shiko. Quarto livro do autor de Maldito Sertão, Fome e Agouro, lançado em 2022 pela editora DarkSide Books, Sina é um romance entremeado por contos, sobre Zé Trancoso que desde muito novo vaga pelo sertão com seu avô, contando histórias de fazenda em fazenda. Após uma maré de azar, Zé viaja sem rumo até encontrar uma cidadezinha, com três mulheres cegas lhe barrando a entrada. Elas pedem, como pagamento pelo acesso, que Zé lhes conte três histórias.
Através dessa base, Márcio Benjamin desenvolve a sua ideia de Nordeste, e mais especificamente, de sertão, onde acontece não apenas Sina, mas todos os seus outros livros de terror. Embora fosse claro em seus trabalhos anteriores que haviam pontos de intersecção em suas histórias, eles vinham da semelhança de ambientação, de tom e de conteúdo, que facilmente eram vistos como estilo do autor. Dessa vez, Márcio Benjamin situa o local de suas narrativas enquanto reflete sobre a maneira como elas dialogam entre si. Essa reflexão é um dos pontos mais interessantes do livro. O Nordeste místico de Benjamin possui um caráter extremamente peculiar, pois, para além do local onde as histórias se passam, ele é ao mesmo tempo um personagem recorrente e um espírito maligno a testar as pessoas através da fé ou da fome. Como personagem, as características que o singularizam são a paisagem, a religião, a oralidade presente no texto e o imaginário nordestino.
Esse último ponto merece uma reflexão maior porque a obra de Márcio Benjamin sempre uniu dois polos diferentes sobre o imaginário nordestino. O primeiro é o imaginário do estereótipo: o Nordeste é um lugar de cidades pequenas, pobreza extrema e fome. O segundo é o imaginário popular fantástico: o Nordeste é um lugar místico, profundamente religioso, repleto de histórias e de um lugar oculto que não conhecemos. Ao mesclar esses dois polos, Márcio Benjamin construiu muito bem em sua carreira uma região à parte, um sertão em suspenso, no qual ele fica livre para brincar como quiser, unindo conceitos diversos e articulando referências diferentes na construção de uma narrativa que soe familiar, mas sem perder seu caráter de novidade.
Assim surge, também, o leitor de Sina. Embora seja um livro de fácil acesso para o novo leitor, espera-se que esse leitor tenha alguma familiaridade com histórias de terror. Não para entender e captar todas as referências e alusões que o autor esteja fazendo, porque isso não importa em uma boa narrativa, mas para não estranhar e ter uma reação imediatamente negativa ao local do qual o livro está partindo e contando suas histórias. Nessa perspectiva, é algo excelente que Sina tenha sido publicado pela DarkSide Books, que, inclusive, fez um lindo e competente projeto gráfico para o livro. Outro acerto da editora foi a permanência de Shiko como capista dos livros de Benjamin, não apenas pela qualidade e o apelo visual de seu traço, mas também porque o recorte que o quadrinista paraibano faz do nordeste em seus trabalhos solo é muito semelhante ao recorte de Benjamin. Assim, quando os dois são postos juntos, as palavras do autor ganham a imagem certa no traço de Shiko — coisa que nem sempre é comum nas capas e nos interiores dos livros.
Em Sina, o leitor irá encontrar um livro de caráter duplo. Como dito acima, esse é um romance entremeado por contos. Na primeira metade, o livro de contos se destaca — existe pouco do romance sendo desenvolvido —, lemos as histórias de Trancoso, através de sua voz, em meio a suas desventuras que, nesse primeiro momento, parecem pequenas em frente aos relatos. O ritmo da leitura, aqui, é desregular dado as inserções das outras narrativas, mas isso não se configura como problema, pois o leitor se acostuma após um tempo. Além disso, esse formato de narrativa é comum na literatura, remete até mesmo As Mil e uma Noites e a própria Odisséia, onde Ulysses assume o papel de bardo de suas desventuras, narrando cada infelicidade em troca de comida e um teto. Assim faz, também, Trancoso no início do romance, seja para as três mulheres cegas, seja para a Maria do circo. Histórias são tudo o que ele tem a oferecer e, portanto, assim o faz. Por sorte, é bem recebido, embora o mal o persiga aonde quer que vá.
Nesse início, os contos complementam a narrativa principal enquanto atribuem peso e caráter ao mal que o personagem teme. Eles se tornam mais interessantes do que o início lento da história de Trancoso. Para um leitor familiarizado com os trabalhos de Benjamin, pode ser frustrante descobrir que o livro traz contos já publicados em Maldito Sertão e Agouro. Mas essa escolha se justifica quando é levado em consideração que o livro possui o propósito de apresentar a obra do autor a um público diferente, por ter sido publicado por uma editora de alcance maior do que a Jovens Escritas (antiga editora dos livros de Márcio Benjamin). Assim, como livro de contos, Sina também funciona como a primeira coletânea do autor, reunindo contos novos e antigos. Isso não é algo necessariamente ruim, mas pode desagradar parte de seus leitores.
Como romance, contudo, surgem alguns problemas. O primeiro deles está no volume de “A última história de Trancoso”, título da maior narrativa do livro que une os demais contos em uma só. A história em si é pequena, não em termos de quantidade de páginas, porque existem grandes romances com pouquíssimas páginas, mas em termos de robustez da narrativa. Suas cenas são curtas e diretas, muito centradas em desenvolver o plot, principalmente na segunda metade do livro quando o romance ganha os holofotes, o que impede o narrador de aprofundar os personagens. Ironicamente, essas características fazem parte dos contos, mas, nas narrativas mais curtas, elas são virtudes porque capturam rapidamente o leitor, o envolvem na trama e o levam ao clímax final sem sentir a leitura passar. Isso se deve ao estilo do texto de Benjamin marcado por períodos curtos e uma troca dinâmica entre narração e fala.
Na segunda metade do livro, quando as histórias paralelas cessam, o leitor deve se habituar a um novo ritmo de narrativa, sem as pausas frequentes, muito mais dinâmico, e com o imediatismo do desfecho próximo. O contraste entre a leitura das duas metades do livro não é algo positivo, pois não há tempo para o leitor absorver a narrativa principal e conectá-la com as paralelas antes que ela passe em busca de um fim. Em contrapartida, os momentos de ritmo mais lento, como o diálogo de Trancoso com as três mulheres cegas, os flashbacks com o avô, o diálogo com Maria, são muito prazerosos de serem lidos.
Outro ponto do livro que a princípio se configura como problema, mas pode ser pensado, é o narrador. É natural que em um livro que reúna contos novos, produzidos para essa edição, e contos antigos, produzidos para livros anteriores, haja diferenças nos narradores. Às vezes o livro usa o narrador-personagem, empregando a primeira pessoa do singular para narrar, como em “À sombra das lâmpadas”; às vezes usa esse mesmo narrador, mas sem participar diretamente das ações do conto, como em “Asas”; às vezes usa o narrador-observador focalizado em um único personagem, empregando a terceira pessoa do singular, como na grande maior parte dos contos e na narrativa principal; e às vezes usa o narrador-observador centrado em personagens diversos, como em “Lajedo vermelho”.
Cada uma dessas mudanças representa um narrador diferente, por isso se configura como um problema. Isso faz com o livro seja um emaranhado de focos narrativos diversos, carecendo de rigor em sua estrutura. Contudo existe uma justificativa no enredo de Sina para essa diversidade de pontos de vista, mas ela apreende apenas os contos convergentes à história principal e não segue com precisão a narrativa maior. Pensemos que, a princípio, o narrador de Sina é um observador que acompanha Trancoso. Talvez seja o próprio Trancoso contando sua história no futuro, após ter passado por todas as desventuras do livro — não importa. Esse narrador possui limitações e regras que são determinadas pelo livro, e, em diferentes momentos da narrativa, empresta seu papel a outras personagens para que narrem suas próprias histórias e infortúnios. Dessa forma, está justificada a maioria das mudanças de focos narrativos. Porém não faz sentido o emprego da primeira pessoa do singular em certas histórias e o emprego da terceira pessoa do singular em outras. Não há uma regra na estrutura da narrativa que justifique essa variação e a justificativa da diegese não faz sentido nesse caso. Assim como não faz sentido que, durante a narrativa de Trancoso, o foco saia de seu personagem e vá para outros personagens pelo que aparenta ser conveniência narrativa. Essa última característica é particularmente problemática porque se apresenta apenas no meio do livro para o final, como se a história buscasse algo mais a se contar por já estar chegando ao fim.
Em uma última defesa do narrador, pensemos naquilo que une cada uma dessas histórias: o sertão nordestino. Como disse antes, o nordeste de Benjamin é algo peculiar. Ele é um personagem onipresente em suas histórias, podendo agraciar os personagens secundários com fartura, amor e companheirismo e puni-los com os mais terríveis sofrimentos, assumindo ao mesmo tempo o papel de benfeitor e de algoz. Dessa forma, todas as histórias acontecem nesse lugar físico, mas que se torna psicológico ao ser incorporado a um misticismo religioso e folclórico, vivido por esses personagens. Cada história, portanto, expressa um aspecto desse lugar em suspenso que, para além do material, também é sentimento: é a masculinidade em bater de frente com o sobrenatural; é a compaixão a uma mãe doente; é a inocência a ser perdida pela criança corrompida. Assim, o foco de cada conto estaria em um desses aspectos, sendo, dessa forma, o próprio sertão nordestino o narrador de cada história.
Infelizmente, a comprovação desse pensamento exige uma análise de maior fôlego focada em cada um dos contos, individualmente, mas é algo a ser considerado. De toda forma, o livro ganha o leitor pela sua inventividade e pela sua prosa leve e dinâmica, se comprovando como um excelente entretenimento, aberto a novos públicos. Sina, junto aos demais trabalhos de Márcio Benjamin, surge como expoente no RN dessa reivindicação nordestina de uma imagem coerente a região, não como local geográfico ou estado historicamente importante, mas como cultura a ser vivenciada. É um olhar particular de um Nordeste que está sendo reinventado e singularizado, como fonte de arte e dos mais terríveis pesadelos.
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Muito obrigado pelo olhar cuidadoso, Gabriel! Por mais críticas como essa por essas bandas!