Saudações cervejeiros e/ou nutelleiros!
Aqui o papo sempre é democrático, tem espaço para quem é raiz e para quem é Nutella também. Não tenha vergonha de ser quem você é, sempre! Seja num estilo ou noutro, sempre haverá uma cerveja ideal para o seu gosto pessoal.
Não costumo fazer postagens seriadas (ou emparelhadas), nas quais o conhecimento prévio sobre o artigo anterior seja requerido. No entanto, no caso do texto de hoje, a leitura do texto anterior (CLIQUE AQUI para saber qual foi) é altamente recomendada. O requisito da necessidade da leitura anterior se justifica porque no texto pretérito são explicados alguns dos adjuntos mais utilizados nas cervejas, e principalmente nas RIS (Russian Imperial Stouts), sendo que o elemento basilar para a caracterização de a cerveja ser ou não Nutella é justamente o uso dos adjuntos tratados (e alguns outros mais que serão vistos adiante).
A princípio, podemos dizer que ser Nutella não é algo necessariamente ruim, é um dos atributos dados pejorativamente à geração Z, mas até aí, nada demais (ninguém aqui quer pagar de conservador obsoleto, “talkei”? De outra banda, ser raiz, inicialmente, não representa muito, já que ter a pecha de “velho” não diz muito mais do que ser ultrapassado diante das novidades. Todavia, na apresentação de hoje, o enfoque é: RIS raiz são as que não se valem de enfeites (modernidade dos adjuntos) e as RIS Nutella são basicamente as Pastries Stouts, com seus mil adjuntos e seu peculiar modo de ser sugar bomb (uma bomba açucarada – cuidado diabéticos!).
Então, vamos ao embate: quem você é nessa disputa?
Nutella ou Raiz?
RIS Raiz – O Elo Perdido
Para se ter em mente o que pode ser denominado de RIS (ou Russian Imperial Stout) raiz, vamos ter que recorrer às definições do estilo mais recorrentes (o BJCP é um bom guia nesse sentido). Se a cerveja evolui com o tempo, e o estilo da RIS é um dos que mais galopam evolutivamente, então ao se falar de uma RIS raiz, estamos quase que recorrendo a um Australopithecus, um elo perdido entre o que havia no passado e as Pastries que atualmente dominam o mercado.
Em termos de análise sensorial, a RIS raiz, no aroma, costumeiramente, é dotada de um caráter rico e denso com bastante grãos torrados, bem maltada, com uma lupulagem e com o álcool em altos teores.
O perfil do malte torrado pode assumir nuances de café, chocolate amargo e notas de cinzas e tostadas que variam de baixa à moderadamente forte em intensidade (não há adição de café, são as notas torradas que lembram o café). O perfil maltado vai de sutil à mais presente, a variar pela opção na receita, mas tende a ser prevalente, sem necessariamente tender ao perfil caramelado, que se notado, não deve ser dominante. Ésteres frutados também podem ser encontrados na RIS, geralmente tendendo à frutas escuras, como ameixa ou passas.
No sabor, além do caráter rico, profundo e intenso dos maltes e da tosta, a RIS costuma apresentar um amargor perene e distintivo, sua lupulagem também costuma ser bem marcante, a qual costuma combinar bem com o alto amargor já advindo da torra do malte.
Os sabores dos maltes torrados podem sugerir um perfil de chocolate meio amargo ou amargo, que costuma se combinar com tonalidades de café mais forte. A torra acaba sendo um elemento essencial na RIS, denotando outros sabores a partir de sua percepção no sabor.
O álcool é um elemento bastante presente no sabor desse estilo, sua força deve ser evidente, no entanto, não pode aquecer demais o palato, tampouco deve ter um perfil de “solvente” (aquele torpor muito agressivo que alguns whiskies mais baratos possuem). O dulçor na RIS deve ser, no máximo, moderado, não tendendo a ser dominante e tampouco enjoativo, sob pena de a cerveja se distanciar muito do estilo a que se propõe.
De maneira geral, a RIS (raiz) é uma cerveja encorpada, com muitas notas tostadas e de torra, com tendências à tonalidades de café e chocolate, com força alcoólica bem destacada e sem recair em um dulçor preponderante que chegue a se tornar enjoativo. A sua dimensão de sabor é complexa, agrega maltes torrados e seus perfis assemelhados, com notas sutis de frutas negras, e um corpo sólido e robusto. É um estilo que em seu primor mais básico (sem adjuntos) é quase extinto, poucas cervejarias se dispõem a produzir essa variante cervejeira, já que o mercado têm clamado por outras formas de Stout’s.
Pastry Stouts: Uma Stout Nutella (e que pode ter até Nutella Adicionada)
Chamar a Pastry Stout de Nutella pode ser até um pleonasmo, já que, em alguns casos, há a adição do doce infantil de avelã como um de seus adjuntos principais. Ademais, pela nomenclatura do estilo, percebe-se claramente a intenção que a Pastry Stout tente emular, de forma mais ou menos explícita, uma sobremesa (Pastry traduz-se por “sobremesa”, ou “confeitaria”). Para atingir essa finalidade, muitos adjuntos são utilizados, dentre eles, a Nutella (ou uma pasta doce que combina chocolate e avelã).
A infinidade de adjuntos utilizados na confecção de uma Pastry Stout é quase que indefinível: pense numa sobremesa, e pense nos seus ingredientes, a partir daí, qualquer cerveja no estilo em tela pode ser montada (ou ao menos tentada). Não raro se vê a adição de oreo, macaroon, chantilly, paçoca, doce de leite, goiabada, marmelada, marshmallow, baunilha, nibs de chocolate, cookie, maple, coco, e qualquer outra invencionice própria da geração Z que se possa imaginar (vale tudo, só não vale pôr borracha!); o céu e a criatividade são os limites para os cervejeiros que investem bastante nas Pastries (sim, em inglês, esse é o plural da palavra Pastry).
O problema é que, às vezes, são tantos adjuntos conflitando ao mesmo tempo no aroma e no sabor que apenas o que se consegue sentir é um perfil indefinido e doce. Nada muito diverso disso. Às vezes, menos é mais.
Apesar de repartir algumas características com a RIS raiz, como o corpo mais robusto (só que nas Pastries, ele é mais robusto ainda, mais encorpado ainda e mais anabolizado ainda, pelo uso de lactose e maltodextrina adicionada), notas tostadas (mas não tanto), e a cor negra e opaca (nesse ponto, não há muitas dissonâncias entre Raiz e Nutella), um elemento distintivo no sabor separa as duas gerações: o dulçor.
Em grande parte, por causa dos adjuntos, não apenas os que emulam a sobremesa, mas também por causa da lactose e da maltodextrina, as Pastries acabam tendo um dulçor fortemente elevado, algo que as leva a receber a pecha de sugar bomb, ou, traduzindo, bombas de açúcar. Tal descrição, certamente, adequa-se de maneira muito salutar à maioria das Pastries do mercado cervejeiro, seu dulçor elevado é uma de suas características mais marcantes, e não raro, ele chega a ser enjoativo e nada agradável. Fazendo com que a cerveja perca complexidade e ganhe unidimensionalidade: apenas se percebe o açúcar (na forma de dulçor excruciante).
Tal qual se faz quando se adoça um café muitos elementos mais complexos, como taninos, advindos da torra, acabam sendo debelados, na formulação de uma Pastry em favor de uma maior aceitação do mercado cervejeiro (Mammon seu danadinho!). Comparativamente às RIS raiz, as Pastries ganham dulçor, possuem um perfil bem menos torrado, e fazem com que os adjuntos tomem a dianteira em termos sensoriais. Ou seja, os elementos que fazem uma RIS raiz são desmontados em favor de uma simplicidade de aromas e de sabores, agora apenas encontrados nos exemplares mais clássicos das RIS.
O mercado se encontra inundado com várias e várias Pastries, as quais são gestadas com muitos adjuntos, várias invencionices e pouco apego ao padrão de uma verdadeira RIS raiz (o desapego é óbvio, constitui o ser da Pastry). Todavia, como (quase) tudo nessa vida, existem dois lados, existem os defensores ferrenhos das RIS raiz e os aguerridos que advogam em favor das Pastries, podendo-se até dizer que existe um certo núcleo revival ou vintage, que clama pela reedição de mais cervejas Stout’s com essa pegada “raiz”.
Para atender esse público, já teve cervejaria que intitulou uma Stout sua como sendo “raiz”, mas, que no final das contas, não era tão fiel às “raízes” do estilo. Explique-se, se uma RIS é raiz, ela não pode conter adjuntos (ou ao menos, não deve contê-los, se você almeja ser RAIZ). No entanto, a aludida cerveja, que o nome da sua criação cervejeira soava como uma eternidade, adicionou aveia, e no rótulo também constava a adição de lactose.
A cervejaria diz que foi “apenas um erro de impressão no rótulo”, e que a cerveja de fato não continha lactose (embora ela admita o uso de aveia como adjunto para incrementar o corpo da RIS). De toda forma, usar adjuntos em sua Stout e mesmo assim clamar o epíteto de “raiz” soa como um tiro pela culatra, um movimento de marketing um tanto quanto fantasioso (para se dizer o mínimo). Parece mais um marketing de guerrilha, em um mercado um tanto quanto agressivo.
Saideira
Para você que é Millennial, e deve ter assistido muitos episódios do programa infantil mexicano Chaves, certamente, recorda-se do episódio da “Bola Quadrada” do Kiko. Parece ser esse o caso, tentar reafirmar apenas pela publicidade algo que não se é, dizer que é “raiz” sem ser, ou, dizer-se “raiz”, mas recorrer à adjuntos. Ou se é “raiz” ou se é “Nutella”, não dá para ser os dois ao mesmo tempo (e clamar não-ser).
Não custa nada se assumir Nutella, caso você seja… o problema é ficar dentro do armário pagando de Raiz (sem ser). Aí pega mal demais, usando vários adjuntos, e “otras cositas más”… O mais correto é se jogar e assumir o (seu) jeito Nutella de ser, sem vergonha de ser o que se é.
Afinal, já dizia o filósofo Parmênides: “O ser é e o não-ser não é”. Não tem como ser e não ser uma coisa ao mesmo tempo sem ferir o princípio lógico da identidade.
Recomendação para degustação
Diferentemente de todas as colunas até hoje, a recomendação não será musical. Vou recomendar que assistam justamente o episódio icônico da bola quadrada (ou ao menos o seu trecho principal). No contexto, o Kiko esperava ansiosamente ganhar sua “bola quadrada”, algo que, obviamente, só existia em sua imaginação, igual uma RIS raiz com adjuntos (aveia e lactose).
Saúde!
Ps. Voltaremos à programação normal no próximo texto, e teremos uma recomendação musical à altura.
CRÉDITO DA FOTO: publicada no site Maria Bonita Beer.