A Revolução Cultural Nazista
Autor: Johann Chapoutot
Tradução: Clóvis Marques
Editora: da Vinci
Ano: 2022
Páginas: 262
Um dos maiores entraves para identificar a permanência das ideias nazistas (mesmo que com outras roupagens simbólicas e retóricas) no mundo atual é a dificuldade de se entender o fenômeno do nazismo histórico. Ainda mais agora, cem anos após o famoso Putsch de Munique (também chamado de “Putsch da cervejaria”): a tentativa de golpe de estado patrocinado pelos nazistas durante a República de Weimar, que levou Adolf Hitler à prisão e à concepção de seu livro: Mein Kampf.
Em meio a negacionismos, reducionismos e revisionismos históricos de toda sorte, patrocinados por redes de extrema direita que visam propagar ideias e valores nazifascistas sem que as pessoas percebam o que essas ideias e valores são de fato, livros como “A revolução cultural nazista” de Johann Chapoutot, publicado agora pela editora da livraria Leonardo Da Vinci (uma das instituições culturais mais icônicas do Rio de Janeiro), são essenciais.
Especializado em história intelectual e política da Alemanha nazista, Chapoutot (que se tornou professor da Sorbonne aos 35 anos) apresenta uma coletânea de artigos que nos fornece um panorama bastante amplo e instigante de como os nazistas atuaram no campo do imaginário alemão, articulando ideias, mitologias políticas e valores disseminados por séculos no pensamento europeu, a fim de preparar terreno para a implantação de seu projeto de genocídio e colonização.
Essa preparação era atestada já por Goebbles em seus diários, quando o ministro da propaganda de Hitler afirmava que seria necessário educar o povo alemão para que esse pudesse aceitar medidas duras, mas necessárias, que implicariam na “eliminação desses seres que não são mais viáveis”.
A tessitura ideológica desse preparo é explorada em diversos níveis por Chapoutot em seus artigos, indo desde questões que envolvem as concepções jurídicas e a crítica à ordem internacional, até os discursos sanitaristas de limpeza e descontaminação racial, passando pela reformulação da moral sexual, que implicava a exaltação da poligamia masculina como forma de garantia da manutenção da raça alemã.
Achei uma leitura particularmente instigante os capítulos em que Chapoutot trata da “germanização de Platão” e da apropriação de Kant por parte dos filósofos nazistas.
Afim de consolidar seu projeto político, a intelectualidade nazista construiu um esforço de refundar a moral alemã a partir de uma visão de mundo que articulava vários elementos já presentes na cultura europeia desde a idade média. O que os nazistas fizeram com sucesso foi juntar esses elementos dispersos, tais como o antissemitismo, o conservadorismo sexual, a noção de destino manifesto germânico e de uma missão civilizacional dos povos europeus, tudo isso liquidificado com uma visão de superioridade racial, um anticomunismo e uma rejeição a todo tipo de cosmopolitismo humanista que a modernidade haveria legado. A noção fundamental seria a de “apagar 1789 da história alemã” e retroceder o rumo dessa história em direção à uma época perdida, cercada por uma glória passada imaginária, situada no alvorecer da idade média ou mesmo retroagindo para tempos imemoriais e mitológicos dos povos indo-europeus.
No meio desse delírio reacionário os nazistas surfaram na tradição alemã de buscar conexões do pensamento germânico com a Grécia antiga e criaram uma imagem curiosíssima de um “Platão nórdico”, uma espécie de rei filósofo guerreiro de olhos azuis e cabelos loiros que se oporia, com seu pensamento, às correntes filosóficas orientais, contaminadas pelo “filo semitismo”. A partir de uma leitura racista, que subordina escolas filosóficas à linhagens raciais, os nazistas pintaram um Platão dórico, indo-europeu e germânico, que teria produzido o ápice do pensamento na antiguidade, mas que teria sido derrotado em sua batalha cultural pelo estoicismo e pelo epicurismo. Assim, a filosofia da era helenista, influenciada pelo judaísmo e pelo pensamento oriental, teria se infiltrado no império romano corroendo e decompondo a força do pensamento grego e criando condições para uma decadência civilizacional.
O mais espantoso, no entanto, é o que esses pensadores nazistas fazem com Kant. Isso porque é difícil, mesmo para quem apenas tateou um ou outro texto introdutório sobre o pensador de Königsberg, imaginar que seria possível nazificá-lo. Afinal não seria justamente o Aufklärung (esclarecimento, iluminismo) alemão o grande inimigo dos nazistas? Com todo o seu individualismo, cosmopolitismo, humanismo, liberalismo e universalismo o Kant nazista é fruto de uma desleitura brutal patrocinada pelos intelectuais do Reich.
Tomado, junto com Hegel, Bach, Hölderlin e Mozart, como um dos grandes heróis culturais de uma nação de “Dichter und Denker” (poetas e pensadores), Kant se tornou referência para a formação de oficiais da SS, como por exemplo, Adolf Eichmann que chegou a admitir em seu depoimento para policiais israelenses durante seu julgamento em Jerusalém, que não apenas seguia os preceitos morais do filósofo, como havia se dedicado à leitura de sua Crítica da Razão Prática.
Chapoutot mostra muito bem no seu livro como essa desleitura de Kant foi patrocinada pelos nazistas, esvaziando o conteúdo moral do pensamento kantiano, exumando o seu famoso “imperativo categórico” do seu igualmente famoso principio da dignidade humana. Deste modo, o imperativo de ação que Kant formulou, antes de expor a razão universal que diria respeito a toda humanidade, é lido pelos nazistas como uma ordem que se submete aos valores morais da comunidade racial alemã.
Esse desvio aparece de maneira bem clara quando, em 1942, no auge do extermínio e da guerra na frente oriental, Hans Frank formula a noção de que o imperativo categórico de Kant produz o “imperativo de ação do IIIº Reich” que é: “age de tal maneira que o Führer pudesse aprovar se tomasse conhecimento da tua ação”.
É bastante perturbador, amigo velho, para quem gosta de se aventurar no mundo da filosofia, vendo o caso do “Kant dos nazistas”, perceber como o texto de um sujeito pode ser apropriado em uma narrativa ideológica e acabar dizendo justamente o oposto que ele evidentemente diz.
Esses são alguns dos assombros que a pesquisa histórica de Chapoutot nos apresenta. Por isso, recomendo fortemente esse texto para quem, como eu, tem um interesse particular na história política do último século.
No fim das contas, ao chegar na conclusão do livro, apesar de admitir o rigor e qualidade do trabalho do autor, a gente termina a leitura com um sentimento de que ele pode ter cometido, pelo menos, um erro de “análise de conjuntura”. Isso porque Chapoutot, ao oferecer uma caracterização definitiva do fenômeno histórico do Nazismo em sua pretensão de usar o genocídio como ferramenta colonial de dominação da Europa do Leste e de expansão territorial alemã, escreve: “Era essa escatologia biológica, essa grande paz do espaço vital, que se pretendia construir com uma guerra horrenda. Foi esse espaço infinito de felicidade e prosperidade racial, esse futuro radioso da biologia, que ficou para trás em 1945, para o bem da humanidade”.
Olhando pelo meu celular as últimas notícias do genocídio em Gaza e ni Sudão e da limpeza étnica em Nagorno-Karabach chego a duvidar desse diagnóstico.
Será, Chapoutot, que esse horror ficou mesmo para trás?
1 Comment
Pablo, você destacou pontos da obra que de fato nos instigam a lê-la.
Eu sabia de algumas conclusões absurdas de Heidgger a partir das análise de poemas de Holderlin , mas não que o imaginário da elite intelectual alemã tivesse sido infectado a esse ponto.
Olavo de Carvalho, considerado por muitos o maior filósofo brasileiro, fez algo parecido. Platão, Aristóteles Schopenhauer e outros foram usados por ele na defesa da ultradireita.
Grato pela dica e pela resenha.