Reis da escola

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Quero viver num Bildungsroman clichê, ou sua adaptação dublada na programação da madrugada – o leprosário televisivo. Meu drama geracional cult emanaria duma TV de pousada trash de rodoviária, uma fantasmagoria catódica dançando na parede fátua. Já vejo a mesinha com bíblia mórmon, intocada pelas caricaturas de vida que lá se masturbaram.

O plano é mudar de identidade e encenar outra vida. Meu eu adolescente conceitual se chama Hawk ou Fawkes? Eis Hawk ou Fawkes, um tropo setentista numa cloaca terminal, Las Cruces ou Long Pine, escoadouro de figurantes da existência focado em bodes e picapes de pedófilo, ralo ontológico onde os deuses tombam cirróticos e banguelas por bala de agiota, e a falta de assento nas praças precipitaria a carnificina como alternativa recreacional.

Hawk fora pra lá evadindo um pai truculento e uma mãe servil. Não sei se, embora impulsivo, tinha grande coração. Virava jardineiro duma coroa? Ia aos cinemas nas tardes livres e oleosas ou andava até o fim da cidade, que era feito o fim do mundo. Não há Leviatãs no fim do mundo, só cães de rua de coração partido.

A coroa confessaria que há anos não sabia o que era pica (na dublagem seria “amor”). O marido, inspetor de logística rodoviária, devotara-se de todo a um abrigo sobrevivencialista anti-comunista. Eu não sabia transar, mas ela me amava, ao menos o bastante para simular orgasmos. Na galeria onde via meus filmes cabeçudos conheço Gislene, que me deflora no xadrez e ri da minha revolta. Cuspi que não voltaria a me envolver com caipiras e varei a cidade furiosamente, pensando em reaver minha honra por seppuku, como o Mishima, e em suas coxas.

Nós, invasores de ruína de educandário, melados nas cercanias ermas daquele culus mundi, nas ossadas de carteiras e cadernos, atirando nas latas de cerveja com um revólver roubado do marido da coroa. “Gis e Hawk, transões do sexto ano” em carvão na parede, os dois rachando pro livro de educação sexual com pirocas falantes. Ela quase se mija quando martelo “Evidências” do Chitão versão bebolixo num piano detonado, campo minado de três teclas operantes oracularmente distribuídas. E o que eu seria em dez anos? Gigolô ou normcore lírico chestertoniano? “Almofadinha lírico. Não, alcoólatra pançudo. Definitivamente”. E seus olhos de repente tristes, refletindo o naufrágio da tarde nos escombros da infância.

Pergunto da cicatriz no rosto, ela fala do pai. Quebro uma mesinha escolar nas cinzas do parquinho, minha mão sangra por um talho feio. Posso matá-lo, digo mais tarde, ela me empurra e soca espumando. Lutamos nos entulhos ridiculamente. Diz que não entendo a dor humana, a dor de um viúvo alcoólatra desempregado, que não entendo o amor porque sou um mimado de merda posando de incompreendido, e não entendo de perdão, e não entendo Dostoievsky, e Michkin sim é um homem, eu só um pirralho imbecil afetado, e amor é beijar o leproso, e amor é um holocausto, não um unicórnio defecando cupcakes. Quando enfim paramos choro e ela zoa da minha fuça, como no dia do xandrez. Lambe uma lágrima no meu olho e me empurra e vai embora correndo. Meu coração é um desfile alegórico da Portela, sufocado como Santa Teresa em êxtase no ocaso apócrifo do playground.

Nos víamos todo dia, os escaravelhos afogavam de tédio penitente nas poças da garoa constante. Sob postes bulímicos, os nossos corações trôpegos, o sangue que errava de veia. Uma tarde no trampo o inspetor logístico me chama e me leva no bunker; a coroa confessara tudo. Vinha rancorosa, agora que eu arcava com um arbusto a menos. Havia muitas ferramentas no bunker do folote olavista. Me antevi num hospital, médicos extraindo-as cirurgicamente do meu reto. Não era o fim. Ele, confessou, era cuckold, e ´perdoaria tudo. Hosana nas alturas, hineni hineni, aqui estou para o teu louvor. Tinha uma pequena condição, porém. Queria assistir, do cantinho da cama, a esposa ser rasgada ao meio, pelo presidente em fardas nazis, e dispor-me-ia eu, jovem poldro taludo, a encená-lo, emulando ademais suas repulsivas inflexões? Face à recusa, ele partiu minha clavícula.

Havia sangue no chão, manchando as ilustrações evangélicas dum paraíso meio rancho de hippie serial killer. Soube que Gis vinha cuidando de mim quando recobrei a consciência, na pensão. Na janela o declínio das tardinhas de tristeza viscosa e póstuma. O carro de som alternava mensagem de óbito e anúncio de calçado. A chuva trouxe efemérides que se estatelavam estupidamente nas lâmpadas. Nas noites quentes eu tinha as pernas de Gis e seus olhos perdidos nos letreiros da esquina e sua ternura rude, recendendo a fumaça gordurosa de lanchonete.

A coroa do inspetor me bateu à porta uma madrugada, vestida eroticamente em intento. Me amava, não vivia sem mim, chorava, a maquiagem obscena derretia. Era a paródia de uma prostituta. Fui tomado de compaixão e amor e nojo. Abracei-a como a uma criança órfã e sufoquei um soluço brutal como peristalse.

Eu e Gis na escola abandonada, o poente groselha deitava no cascalho nossas sombras no balancinho arruinado. Gis amarra uma fita de Senhor do Bonfim no meu pulso e me desenha um cão na mão e escreve “Hawk cadela de caipira” embaixo. Contei que iria embora. Pra onde? Não sei, venha comigo. Não sei onde fica não sei. Fica aonde toda estrada real leva. Não me deixe estendendo a mão na noite do mundo. E segurei sua mão. Nunca vou soltar sua mão. Mas meu pai precisa de mim. Ele não é uma criança, porra. Todo mundo é. Então enforquem as crianças! Eu também sou uma criança. E você também. As inúteis cigarras no mato. Você tem que vir… Vamos deixar essa moenda de almas. Nenhum coração sai dessa vala comum da inocência sem feder a uréia gelada. Por favor. Venha comigo. Por favor.

As cigarras idiotas, nas árvores inúteis. Preciso te contar. Preciso contar, Hawk. Não sou quem você pensa. E derrama tudo sobre a vida secreta para manter o pai. Era, enfim, uma acompanhante. Vomitou no chão e engasgou nos debris do que não fomos. Grasnou desvairada por perdão, tremendo e encolhendo como um feto. Clamou para que eu a odiasse e não a visse de novo, e de novo por perdão, e de novo para que não fosse embora. Eu fitava um velocípede fodido nas ruínas. Dormimos nos destroços.

A rodoviária era um arquipélago tacanho salpicado de mascotes sumindo das placas, um processo de constante desaparecimento, como as faces erodidas pela estagnação econômica coalhando no meio-dia empoado e febril. Sonhara que Gislene fugia por entre uma procissão, um mar de velas de quaresma que tomava as trevas barrentas duma rua interiorana, e a procurei entre os penitentes, bêbado do coro de velhas atonais que inflamava clowns de Folia de Reis. Éramos anti-Dédalos cuja tragédia foi não cair, porque não ascendemos, sequer, do chulo labirinto paroquial deserdado por um Minotauro desapontado. Encarei um copinho descartável de café frio, abortado pela metade num assento da rodoviária. “Força, irmão”. O ônibus vem e, quando subo, penso ouvir meu nome. Me volto, com olhos infinitamente vulneráveis.

Sobem os créditos, os figurantes e técnicos da minha vida postiça, sem os nomes dos dubladores reciclados do Chaves. Imensa sacanagem. Gis mudou de ideia de última hora? Correu tropeçante, gritando meu nome cambeteando docemente? Hawk, o terno indômito, a entenderia? Nunca o saberemos. Tudo rebobina, os outdoors erodidos, a solaridade hopperiana das ruas comerciais, os cinemas fechados, as lojas falidas e os melancólicos cartazes de “Aluga-se” e de “Anal sem frescura” nos orelhões, os corações inocentes estilhaçados contra um mundo indiferente e implacável, e tudo é amor e sangue e candura, eternamente. Quero viver num eterno clichê.

Daniel Liberalino

Daniel Liberalino

Escritor, desenhista, músico e pesquisador.

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