O reaproveitamento de cervejas e o porquê de isso não ser bom

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Saudações, cervejeiros!

Voltando à ativa com os textos do blog hoje após um tempo “de férias”, talvez o escrito tenha mais um tom de desabafo que propriamente de crítica (construtiva, por assim dizer). Certamente, deve haver um pouco de cada coisa, mas, cada um dá a sua perspectiva que melhor lhe convier ao final.

Enfim, no texto de hoje, vamos falar sobre uma prática um tanto quanto comum das cervejarias, que, por vezes, pode passar despercebido da maioria dos consumidores, mas, que eu julgo ser um tanto quanto inconveniente. Ademais, é algo que prejudica bastante o resultado final, quando altas expectativas são criadas sobre uma cerveja ou sobre um pack especial de cervejas.

A prática em relevo é o “reaproveitamento” de cervejas, que foram, inicialmente, concebidas para ser de um estilo, mas, que ao final da cadeia produtiva, por uma miríade de fatores diferentes, acaba se convertendo em algo diferente. A diferença do resultado final para aquilo inicialmente pensado pode ser mínima ou às vezes abissal, vai depender do quanto ela se afastou da ideia pensada anteriormente.

De toda maneira, vamos debater um pouco sobre esse ponto e repensar como os modos agressivos de produção geram essa necessidade de reaproveitar algo que, possivelmente, deveria ter tido como destino o ralo.

Da previsibilidade e da imprevisibilidade: a variância e o absurdo

Inicialmente, é de bom tom deixar assentado o entendimento que o resultado final da produção de uma cerveja não é exatamente uma conta de matemática. Há muitas nuances e muitas variantes que podem afetar o que vem na garrafa ou na lata. É certo que com o avanço tecnológico e consequentemente produtivo, as variações tendem a ser menores, e a previsibilidade aumenta.

Ainda assim, só se poder asseverar o estilo da cerveja produzida ao final de todo o seu percurso. Por mais que a ideia concebida inicialmente seja uma, o que vai definir qual é o estilo da cerveja feita é aquilo que se prova após o seu envase (ou enlatamento). Antes disso, podemos ter apenas uma vaga ideia do que se pode esperar ser feito.

A previsibilidade sobre o estilo a ser alcançado é ainda menor quando se trata de estilos menos comerciais e quando se trata de envelhecimentos em barris.

Primeiramente, nos estilos menos comerciais, a “repetibilidade técnica” do estilo é um ponto que tende a fazer com que ele seja menos previsível. Isto é, quanto menos uma cervejaria tem a experiência e a expertise em fazer aquele estilo, mais variável será o seu resultado final. Inversamente, é por causa disso que uma cerveja de massa tende a variar bem menos que uma artesanal qualquer, já que ela é repetida à exaustão por longos períodos de tempo.

Secundariamente, cervejas envelhecidas em barris seguem uma lógica bem menos usual do que os demais estilos que não passam por barricas. A ciência aqui envolvida é muito mais sensível e bem mais susceptível a variações de temperatura, pressão, umidade, armazenamento e muitos outros fatores que, por menores que sejam, são capazes de influenciar grandemente o resultado final. Daí a sua imprevisibilidade ser muito maior, beirando a teoria do caos em sua capacidade de acerto prévio.

Resultado diverso do pretendido e o reaproveitamento

Eu acredito que a premissa básica dos direitos humanos deve ser seguida à risca no mundo cervejeiro: todo mundo erra, e, ainda assim, deve ser tratado dignamente por isso. Ou, recorrendo ao pilar cristão e bíblico contido em Jó 8:7: “Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra”. Mutatis mutandis: o erro faz parte da humanidade de ser humano.

Transportando os mencionados ensinamentos ao contexto cervejeiro, podemos concluir que o problema não é exatamente errar, e sim, como tratar o erro e assimilá-lo. Tal qual na sistemática cristã, o primeiro passo é admitir o erro.

Errar em termos de produção equivale a ter uma cerveja fora de estilo. Porém, essa assertiva é demasiado ampla, já que o resultado final sempre vai se encaixar em algum estilo existente. Desse modo, conceber um erro de estilo pode se dar de duas maneiras, uma posterior e outra pretérita.

A pretérita é quando há a dissonância entre o estilo cervejeiro inicialmente pensado e o que se tem como resultado. Por mais que ela possa estar adstrita apenas ao cervejeiro que detém a receita original, não é difícil se imaginar que essa dissonância possa existir, levando em conta a carga maltada ou lupulada, os adjuntos utilizados e até mesmo possíveis traços terciários advindos do envelhecimento, por exemplo.

A posterior se dá quando o cervejeiro nomeia o estilo em dissonância com aquilo que se tem envasado. Na maioria das vezes isso ocorre quando ele indica que o estilo da cerveja é aquilo que ele inicialmente pensou que seria, mas, no decorrer do processo produto houve algum diferimento, e, o resultado foi bem diferente. Então, há um descompasso entre o que estampa o rótulo e aquilo que se nota sensorialmente.

O maior erro, contudo, é tentar reaproveitar algo que flagrantemente diverge da ideia inicial, tentando salvar economicamente algo inviável. Esse tipo de erro é o mais usual e recorre a duas palavrinhas mágicas que serão mais bem debatidas na seção seguinte.

Um erro para chamar de seu: Sour ou Barrel Aged?

Quem nunca tentou consertar ou remendar um erro crasso? Acredito que todo mundo, em algum momento da vida já tentou fazer isso. Todavia, há um ditado popular bastante sagaz que diz: a emenda saiu pior que o soneto. Ou seja, tentar remediar o que estava ruim (ou consertar o erro com um truque fajuto) piorou ainda mais a situação.

Nessa toada, algumas cervejarias (senão, a maioria delas) acaba recorrendo a dois truques usuais para tentar remendar erros de produção recorrentes: usando as palavras mágicas. Elas são: sour e/ou barrel aged.

É muito fácil chamar qualquer cerveja de sour quando ela foi contaminada por qualquer microrganismo indesejado durante a produção. Isso porque eles tendem a acidificar a cerveja obtida ao final, daí, basta chamá-la de qualquer-coisa-sour e (aparentemente) estará tudo resolvido. Imperial sour, dark sour, sour IPA, ou as wilds da vida, e qualquer coisa similar é a forma mais usual de tentar reaproveitar uma cerveja que deveria ter sido descartada pela cervejaria.

Outra medida emergencial de fácil tomada é pôr a culpa no envelhecimento do barril. Já ponderei que envelhecer cervejas é uma tarefa complexa e um tanto hercúlea. Contudo, não dá para colocar todos os erros na conta do barril e envasar qualquer coisa para vender. Existe um limite (tênue) entre as notas dissonantes que um barril pode aportar à cerveja e um resultado totalmente errado que põe a cerveja final em risco de ser vendida como um fracasso.

Cabe ao bom cervejeiro prudente saber medir isso e não lançar qualquer coisa a qualquer custo, empregando apenas as duas palavras mágicas, pois, parece que em inglês qualquer coisa soa mais chique e mais “palatável” aos ouvidos ou aos olhos (mas nem tão aprazível assim ao paladar, que é o que de fato importa).

Saideira

O reaproveitamento de cervejas, em estilos diversos daqueles inicialmente pensados na execução das receitas, é uma realidade inarredável. É nessas situações que o proveito econômico se sobrepõe à qualidade do produto final, pois, não é factível se perder algo que pode ser reaproveitado apenas trocando o nome do estilo no rótulo, não é?

O pior de tudo isso talvez seja a desfaçatez das cervejarias em promover esse reaproveitamento mambembe achando que o consumidor não vai notar. Sempre se nota e sempre será notado. As cervejarias podem até conseguir vender (a maior parte) de uma cerveja reaproveitada, mas, eu acredito que a repercussão negativa desse tipo de atitude acaba sendo pior para elas próprias.

Derradeiramente, uma cerveja que no final de seu processo produtivo fugiu muito de sua proposta inicial deveria ser sumariamente descartada pelas cervejarias, afinal, esse reaproveitamento disfarçado de estilo “sour” ou “wild” apenas tenta mascarar verdades ululantes em seus próprios erros.

Recomendação Musical

A recomendação musical de hoje é de um estilo musical que fez muito sucesso no final dos anos 90 e começo dos anos 2000, mas, que hoje, parece ter morrido ou sofrer de uma letargia estagnante total. Falo do Britpop, algo que para os mais novos pode parecer coisa de outro mundo.

Como o texto de hoje fala de erros (sem tanta intenção assim ou com bastante proveito?), a música recomendada é o petardo de uma era: An Honest Mistake, da banda britânica The Bravery. Além de ser uma canção “chiclete”, o clipe é maravilhosamente divertido! Aproveitem!

Saúde!

 

 

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

Sigam-me no Untappd (https://untappd.com/user/Ericksen) para mais avaliações cervejeiras sinceras, sem jabá (todavia, se for dado, eu só não bebo veneno).

A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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