Qualidade versus quantidade: o eterno dilema das cervejarias

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Saudações, cervejeiros!

Hoje vamos falar de assunto que parece afligir o ser humano de uma forma quase que universal, em todos os recônditos de sua alma. O eterno dilema pós-moderno: é melhor ter qualidade ou quantidade?

Claro que a resposta mais imediata e mais óbvia, certamente, deve ser: qualidade!

Qualidade, sempre! Pode gritar o neófito mais empolgado (e um tanto quanto desavisado).  Contudo, porém, todavia, na teoria, a prática é outra! Não se trata de uma escolha assim tão simples.

Ao falar do universo e da cultura cervejeira como um todo, para as cervejarias, especificamente, o dilema se acentua ainda mais. É o óbvio ululante que, no melhor dos mundos possíveis, seria sempre preferível fazer a melhor cerveja que os insumos escolhidos pudessem prover. No entanto, uma cerveja não é simplesmente feita no melhor dos mundos possíveis.

No mundo real existem outras variáveis que impactam diretamente a escolha a ser tomada. Não fica simplesmente fácil e reducionista escolher a qualidade antes da quantidade. Aliás, ouso dizer que para os consumidores, ou pelo menos a maioria, ainda que esclarecidos, nem sempre optam, conscientemente, pela qualidade.

Por vezes, o caminho escolhido é o quantitativo. Por isso, vamos tentar desvendar um pouco porque a escolha pode vir a ser tomada tendo essa trilha como norteamento.

O gasto e o seu retorno: o primeiro dilema qualitativo

A tônica do texto de hoje é uma só. Se a qualidade é um atributo essencial de qualquer cerveja, por que todas as cervejas não são feitas levando prioritariamente tal quesito em consideração?

O primeiro possível motivo para o qual a qualidade das cervejas não ser, necessariamente, o seu primeiro atributo em arquitetura se dá pela questão do gasto e do seu retorno.

Basicamente, uma questão de custo-benefício.

Assim sendo, é possível se ter o máximo de benefício com o mínimo de custo priorizando a qualidade das cervejas?

Essa, certamente, é a pergunta de milhões.

Sou cético nesse questionamento, mas tendo a acreditar que, muito raramente, é possível que o custo qualitativo acompanhe o benefício retornado pela escolha.

Mas muito raramente mesmo!

Não há de se esquivar que o elemento prioritário de qualquer empreendimento (capitalista) é o lucro.

No mundo da cultura cervejeira não é diferente, exceto quando se trata das trapistas! Ou seja, a qualidade das cervejas é diretamente afetada pela busca pelo lucro, comprar os insumos de modo a retirar o máximo de benefício deles, lucrando, assim, o máximo possível com o produto obtido (a cerveja).

Por causa disso, é muito raro que a qualidade preceda o lucro, por uma questão de lógica operacional mesmo. Contudo, o exemplo da excepcionalidade já foi mencionado.

No caso das cervejarias trapistas (leia mais sobre um de seus estilos aqui), o lucro não precede a qualidade. Dessa forma, os monges cervejeiros são livres para exercitar seu mister sem as amarras da busca pelo expurgo da mais-valia.

O marketing do cervejeiro versátil

São raras as cervejarias que se dedicam a um nicho de mercado em específico. Exemplificativamente, apenas às cervejas da escola alemã, ou apenas às da escola belga; de modo mais amplo, apenas às Lager’s, ou, talvez, apenas às cervejas Barrel Aged (envelhecidas em barris).

Claro que existem cervejarias (inclusive nacionais) dedicadas a cada um dos nichos mencionados de modo exclusivo. Há cervejarias que só produzem cervejas da família Lager, por exemplo, a Cervejaria Avós. Apesar de raro, a cervejaria mencionada mostra que é possível se especializar em apenas cervejas dessa família.

Contudo, a experiência mais corriqueira demonstra o contrário. Ela indica que uma cervejaria com um leque muito mais amplo de cervejas em seu portfólio tende a ser mais reconhecida e muito mis reverenciada como uma cervejaria de alto primor.

Ou seja, independentemente de qualquer evidência qualitativa, uma cervejaria que lance muitas cervejas, em um curto espaço de tempo, variando sobremaneira os estilos e os rótulos, tende a ser melhor classificada. O motivo para esse apreço não é tão claro, mas aparenta dizer que, quanto mais produtiva a cervejaria é, melhor é a sua qualidade.

Muito embora não haja nenhuma relação de causa e efeito, nem para se dizer que quem é mais produtivo tende a prezar mais ou menos pela qualidade, o simples enfileiramento de novos rótulos, a princípio nada prova. Não é porque uma cervejaria lança muitos novos rótulos que ela é necessariamente ruim.

É como se a lógica fosse subvertida, quantitativamente mais rótulos implicaria mais qualidade. Quando, o mais comum, é que seja o contrário, quanto mais tempo de esmero e dedicação a um único rótulo, tende a simbolizar uma maior qualidade no resultado da cerveja obtida.

Claro que há exceções, tanto para um lado quanto para o outro. Por vezes, uma cervejaria com poucos rótulos tem poucas cervejas de qualidade, e o inverso é verdadeiro, uma cervejaria com muitos rótulos diferentes, consegue consistentemente manter a qualidade das cervejas produzidas.

Mesma IPA, rótulo diferente

Quem nunca passou por essa experiência, ou tem pouco tempo de imersão na cultura cervejeira, ou teve sorte, ou simplesmente não gosta de IPA.

Se você realmente gosta do estilo, ou mantém avivado por algum tempo o interesse por ele, certamente já teve a sensação de: “acho que já bebi uma IPA muito parecida com essa, mudava apenas o rótulo”.

A saturação mercadológica das IPA’s é um reflexo imediato da vasta quantidade de rótulos do estilo colocados em circulação. Vou além, o problema vem se agravando ainda mais em função de a quantidade exorbitante ofertada não estar em compasso com a qualidade dos produtos.

Temos cada vez mais IPA’s, já que essa é uma demanda (ou, pelo menos, até recentemente, era) dos consumidores. Infelizmente, são IPA’s de baixa qualidade, que muitas vezes não são feitas com esmero, apenas de maneira fugaz tentam preencher essa lacuna no mercado cervejeiro.

Por mais que os rótulos mudem, temos sempre a percepção de que se trata da mesma cerveja ou de uma cerveja muito similar. A maioria das cervejarias relança a mesma base (maltada), mudando apenas os lúpulos utilizados.

Isso não se converte em uma cerveja exatamente diferente, já que uma mistura de lúpulos diferentes aromáticos e de amargor pode ter um resultado muito parecido com o de outra mistura, que use lúpulos diversos.

Pior ainda é quando há rumores (os quais não posso confirmar) de que a cervejaria repete exatamente a mesma receita, mesma base maltada e mesmo lúpulo (ou lúpulos) e troca apenas o rótulo. Como não é obrigatório informar quais tipos de maltes, de levedura ou de lúpulos foram usados, não há, a princípio qualquer violação legal.

No entanto, vejo que se trata de uma falta ética e moral gravíssima, ao meu sentir.

Absolutamente, quando se fala de mais IPA’s, em diferentes quantitativos, o resultado não se coaduna em uma maior qualidade dos produtos postos em circulação.

É certo que a repetição de receitas de um mesmo estilo tende a promover a evolução, já que pequenos erros podem ser consertados entre um lote e outro, todavia, no caso em tela, parece que a repetitividade e a quantidade em nada ajudam a qualidade das cervejas.

A novidade pela quantidade X qualidade em primeiro lugar

De maneira muito engraçada, até, é mais comum ver comerciais de cervejas de massa exaltando a “qualidade em primeiro lugar”, muito embora saibamos que se trata de um dolus bonus (uma “mentirinha inocente” para vender mais).

No caso das artesanais, o apelo de marketing sempre vai por outro lado, não se costuma exaltar a qualidade (é como se isso fosse presumido) e sim a novidade. É como se o consumidor mais ávido das cervejas artesanais já depreendesse que todas elas são da mais alta estirpe, faltando apenas perseguir o que há de novo.

Nesse compasso inconteste do mercado cervejeiro artesanal o que se percebe é que a qualidade, um atributo velado, passa ao largo, enquanto que a ânsia pela novidade se torna o mote principal. Não é necessário verificar se a cerveja é boa (qualitativamente falando), basta que ela se enquadre no que é “novidade”. Sumariamente, se ela atende aos requisitos do hype.

O resultado mais imediato desse movimento é que os estilos mais clássicos acabam subjugados, subvertidos ou esquecidos, na maioria das vezes. Ao passo que a tríade santificada das IPA’s, Sour’s e Stout’s segue incólume. Quantitativamente fortalecidas e qualitativamente depreciadas.

Saideira

O dilema existente entre priorizar qualidade ou quantidade sempre assombrou e sempre assombrará a humanidade. Não é fácil equalizar ambas as arestas e ter um produto que agrade o público de maneira ampla e geral.

Em virtude do próprio sistema de produção capitalista (ao qual estamos inexoravelmente submetidos) o lucro massacra a busca primordial pela qualidade. Se eu fosse defender esse sistema, eu diria que a escassez dos insumos cervejeiros tolhe uma oferta ilimitada de cervejas excelentes e que atendam perfeitamente aos critérios de qualidade.

Como esse pano eu jamais passarei, tento verificar a questão sobre uma ótica mais mecânica das condições de consumo cervejeiro. As pequenas vicissitudes e particularidades da cultura cervejeira atual nos jogam para uma repetição quantitativa, tanto de rótulos quanto de estilos.

O sistema se retroalimenta, da mesma maneira que a maioria dos consumidores demanda que ele seja assim, ele se regurgita em atender e se manter em estado osmótico de reprodução de aceleração quantitativa, em detrimento da qualidade.

Possivelmente, a maior explicação para que a qualidade não seja sempre exaltada no meio cervejeiro artesanal é porque ela acaba sendo presumida.

É como se toda a cerveja artesanal fosse automaticamente de alta qualidade. Então os demais atributos (que deveriam ser acessórios) são exaltados e tornados principais. De modo que a novidade e a alta rotatividade de rótulos é exaltada e perseguida em primeiro plano no consumo cervejeiro.

Recomendação Musical

A música recomendada de hoje não vem com nada muito além do que ela mostra. Tem coisa melhor que música de qualidade?

Portanto, apreciem a canção Pumped up Kicks, da banda de Indie Rock americana Foster The People. Um clássico recente.

Alta qualidade musical!


FOTO: postada no blog Capitão Barley

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

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A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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