por Manoel Onofre Jr.
Passando em frente ao prédio da antiga Faculdade de Direito – belo prédio, criminosamente abandonado -, lembrei-me do tempo em que ali estudei, nos anos 60, precisamente de 1963 a 1967. Na verdade, lembrei-me mais dos mestres que compunham o corpo docente da tradicional escola.
Sob a direção do Prof. Otto Guerra, a quem chamávamos, carinhosamente Frei Otto, a Faculdade congregava alguns luminares da intelectualidade papa-jerimum: Alvamar Furtado, Américo de Oliveira Costa, Antonio Soares Filho, Claudionor de Andrade, Edgar Barbosa, Floriano Cavalcanti, João Vicente da Costa, José Emerenciano, José Gomes da Costa, Lins Bahia, Luís da Câmara Cascudo, Manuel Varela, Milton Ribeiro Dantas, Paulo Viveiros, Raimundo Nonato Fernandes e Véscio Barreto, além de Otto Guerra.
Raimundo Nonato
De todos eles, era Raimundo Nonato, professor de Direito Administrativo, o que mais levava a sério a missão de ensinar. Distribuía, gratuitamente, uma apostila mimeografada, de sua autoria, sobre Direito Administrativo, a que eu recorria antes de mais nada para estudar a matéria, que me parecia desinteressante, árida.
Nas notas, Prof. Raimundo não era duro, nem generoso, era justo. Grande figura humana. Madeira de lei, como se dizia antigamente. Biotipo sui generis : magro, feioso, desengonçado. Em sala de aula, escrevendo, no quadro negro, a sinopse do ponto em estudo, sujava-se de giz, por vezes deixava a esponja escapar-lhe da mão. Nenhum aluno sequer pensava em troçar dele, todos o respeitavam.
Paulo Viveiros
Paulo Viveiros, professor de Direito Romano, advogado famoso, tinha o dom da oratória. Vozeirão, palavras acentuadas pelos gestos expressivos, tornava-se, às vezes, histriônico. Sim, a palavra que o define é esta.
Dizia-se que, certa feita, no auge do entusiasmo retórico, afirmou:
– Em Roma, cego é aquele que não vê.
A turma gostava dele.
João Vicente da Costa
João Vicente da Costa, professor de Teoria Geral do Estado, desembargador do Tribunal de Justiça, aposentou-se por limite de idade, no ano em que eu comecei a estudar. Meu avô materno era tido e havido como autoridade na matéria que ensinava, porém, expressando-se com sobriedade, numa linguagem castiça, nem sempre conseguia transmitir bem os seus conhecimentos. Falava baixo, a turma das últimas carteiras da sala de aula ouvia-o com dificuldade.
Eu, que me hospedava em sua casa, lembro-me de que, à mesa, ele costumava, dizer:
– Falem baixo, falem baixo.
E eu, com os meus botões:
– Pois, sim…
Manuel Varela
Manuel Varela, professor de Economia Política, tinha certo prestígio por haver sido, tempos atrás, candidato ao Governo do Estado, com apoio do então Governador José Varela, seu parente. Além do magistério, integrava o Ministério Público Federal, exercendo o cargo de Procurador Regional da República. Mentalidade conservadora, dizia-se “um homem chumbado à lei”. Expressava-se mal, tinha uma voz de taquara rachada. Certa vez, perguntou-me, com um sorriso irônico:
– E sapo canta?
É que havia lido o meu conto “A Cruviana”, em que eu fazia referência à “cantoria dos sapos e cágados no açude”.
Quando republiquei esse conto, tirei dele os sapos cantores.
Edgar Barbosa
Edgar Barbosa, professor de Direito Constitucional, Juiz de Direito aposentado, escritor famoso, era o mestre mais querido da turma, tanto assim, que, no final do curso, foi eleito paraninfo.
Repito aqui, com pequenos acréscimos, o que disse sobre ele num dos capítulos do meu livro “ Alguma Prata da Casa”:
Admirava-o sobretudo pela inteireza e pela bondade, virtudes que ele, por uma espécie de pudor, procurava esconder. Era tímido e tão discreto que até parecia esquivo.
Como professor de Direito Constitucional, o seu papel, em plena ditadura militar, quando a Constituição do país era constantemente vilipendiada, teve grande importância. E o desempenhou de maneira exemplar. Não poupava críticas aos militares detentores do poder discricionário. E nenhum destes tentou colocar-lhe uma mordaça, tanta a autoridade moral, tanto o respeito que infundia.
A turma toda adorava mestre Edgar, apesar da sua austeridade, do seu jeitão de D. Casmurro.
Lembro-me de um fato que diz bem da sua generosidade. Quando eu ainda era seu aluno, pedi-lhe que prefaciasse o meu primeiro livro, “Serra Nova”. Pois ele não apenas fez um belo prefácio, como ofereceu-se para ir comigo à presença do reitor Onofre Lopes, para solicitar-lhe a publicação da obra através da Editora Universitária. E assim, graças ao bom padrinho, pude estrear em livro.
Quando publiquei o meu quarto livro, “A Primeira Feira de José”, enviou-me carta, cuja leitura me sensibilizou profundamente, de modo especial um trecho, que não resisto à tentação de transcrever. Disse:
“Orgulho-me de ter adivinhado, nos bons tempos da nossa Faculdade de Direito, sua vocação para um oficio tão nobre, qual seja o de escrever e pintar a fisionomia da nossa gente no que ela possui de mais pitoresco e característico. Seu destino manifesto é continuar.”
Com este incentivo, continuei.
E hoje tenho a honra de ocupar a cadeira nº 5 da Academia Norte-rio-grandense de Letras, da qual ele foi o primeiro ocupante.
Floriano Cavalcanti
Floriano Cavalcanti, professor de Introdução à Ciência do Direito, havia sido meu professor de História no Atheneu Norte-rio-grandense. Ele não dizia meia dúzia de palavras sem indagar, com toda a ênfase:
-Entendeu você?
Alguns dos seus alunos – irreverentes e gaiatos – atribuíam-lhe frases esdrúxulas. Por exemplo:
-Queríeis regredir à era do Neandertal, entendeu você, quando o hominídeo sugava a medula, entendeu você, óssea.
Floriano Cavalcanti de Albuquerque foi um dos mais ilustres intelectuais potiguares, pioneiro dos estudos filosóficos em nossa terra. Suas aulas – lembro-me bem – eram verdadeiros discursos, de uma oratória retumbante. Quando ele as terminava, batíamos palmas. E ele, vaidoso, gostava.
Era um tipo imponente, vasta cabeleira encanecida e uns modos patriarcais. Expressava-se num português irrepreensível.
Havia então um ditado bastante difundido no Grande Ponto e alhures:
– Pouco importa que a mula manque, eu quero é rosetar.
Pois, uns gozadores transpuseram-no para o linguajar do Prof. Floriano. Assim:
-Pouco se me dá que a alimária claudique, apraz-me acicatá-la!
Mas, todos nós, seus alunos, muito respeitávamos o grande mestre.
Luís da Câmara Cascudo
Para encerrar esta galeria – last but not least: Luís da Câmara Cascudo. Escritor, etnógrafo, folclorista, primus inter pares, ensinava Direito Internacional Público. Havia grande interação entre o mestre e os alunos. Cascudo era extrovertido, bem humorado, contava pilhérias. Muito generoso, era um dos poucos professores que davam nota 10.
Suas aulas eram mais conversas do que propriamente aulas. Ele tinha o dom da palavra, enriquecido pela adequada gesticulação; toda a classe ficava ligada à sua fala.
Quando ensinava História no Atheneu Norte-rio-grandense, Cascudo foi criticado por discorrer, em suas aulas, sobre elementos da cultura popular, como lobisomem e mula-sem-cabeça. Já na Faculdade de Direito isso não poderia acontecer. Ao longo de suas explanações sobre Direito Internacional Público, ele enveredava, às vezes, pela cultura popular, prendendo a atenção da classe, o tempo todo.
Devo dizer que ele não era um especialista na matéria que lecionava. No entanto, com a sua inteligência fulgurante e ampla cultura, desempenhou a contento a sua missão na cátedra.
1 Comment
Beleza, Júnior de Maneco é uma delícia.