Iracema Macedo nasceu em Natal, mas atua como professora de Filosofia no Instituto Federal Fluminense. É licenciada em Filosofia pela UFRN e pós-graduada pela Unicamp. Tem participado do cenário poético potiguar desde os 21 anos. Morou em Ouro Preto, Minas Gerais, por seis anos e vive no Rio de Janeiro há dez anos. Publicou os seguintes livros de poemas: Lance de dardos (2000), Invenção de Eurídice (2004), Poemas inéditos e outros escolhidos (2010) e Cidade Submersa (2015), além de sua tese de doutorado: “Nietzsche, Wagner e a época trágica dos gregos” (2006).
Iracema Macedo é nossa POETA DA SEMANA:
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Febre Alta
No forno de tua casa
quero acender minhas palavras
nas dunas que te cercam
esconder minhas armas
de motocicleta rondas e rondas
minha juventude
pai dos filhos que não tive
pai do meu riso e pranto
Saudade de tudo que sou
e canto
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Dezembro
Mulher, mulher
não vê que eu tô na paz
vamos sambar um pouquinho
vamos descer comigo
solta esse cabelo, põe uma flor
pegamos o teleférico e depois o metrô
Chama a galera toda
todo mundo no liquidificador
Vamos sambar na praça São Salvador
quem sabe a gente se salva
com o samba na causa
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A casa assaltada
cadeados quando quebrados
abrem caminhos, deixam entrar
os hóspedes, bandidos ou inimigos
sem lei nem vez
que ao invés de roubarem
trazem o presente do novo
mistérios, sustos, segredos
coragem para se desviar, migrar
assaltos às vezes são saltos
para um novo e belo lugar
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Bacante
Em meu ninho longínquo
inicio ventos
invento cios
canto e danço em volta do fogo
transformo meu leite em vinho
e ofereço meu corpo para os lobos
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Lunática
Esqueci meu vestido
na casa do homem que amo
esqueci os sapatos, o pente
os fios dos meus cabelos
minha calma ficou lá estendida no quintal
entre manjericão e pitangas
quero a brisa forte dos seus olhos
e a ventania do seu peito
destravando minhas âncoras
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Iniciação
Enquanto ele acalma os olhos com colírios
recito o poema de Laura
desfilo sem pudor
em sua frente
exerço meus ritos, meus mitos
meus vícios
Me atiro inteira
trapezista de circo
e meu salto deixa os marujos confusos
mancho os lençóis com meu sangue
me entrego
sinto o fulgor gelado do champanhe
Não tenho mais medo nem susto
por entre atalhos escuros e secretos
um homem belo me busca e me fareja
cegamente escravo dos meus versos
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Carpe Diem
Não precisa ser um longa metragem
pode ser um curta
sem nenhuma tempestade
há de ser suave
romance, amizade
ou affair
sem eternidades
beijo, gozo, toque
um mistério a mais
ou viagem
Não precisa ser nenhum milagre
pode ser só um riso a dois
à tarde
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Zila
Nessas águas que entrei a vida inteira
Não busquei nem arcas, nem peixes, nem tesouros
Só quis a branda viração das ondas
E a branca luz dispersa sobre o mar
Tentei achar um abrigo
Me queimei em caravelas
Senti dor, medo, frio
Esqueci todo perigo
Nessas águas que entrei
Aprendi a ser espuma
Aprendi com as ondas a perder e a perdoar
E quem aprendeu assim a navegar
Quem se apartou da terra desse jeito
Não sabe mais como voltar
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Descoberta no espelho
Tua pequena varize
se insinuando na perna
fino rio de sangue azul
onde as tristezas navegam
herança de tua avó, de tua bisavó
marca do teu trabalho
do trabalho delas
cicatriz do filho que esperaste
e das escadas que subiste
tua pequena varize
não é doença ou velhice
mas antes sinal de beleza
irmã dos rios, dos navios e da chuva
irmã de todas as coisas
que ultrapassaram limites
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O espantalho
Ao meu redor cresce verde a lavoura
e eu sou de seca palha
Ao meu redor homens se movem e trabalham
e eu resisto imóvel ao meu ofício triste
Estou cercado de arame por toda parte
por toda parte assusto pássaros que amo
Meus braços estão abertos para o espanto
não para o trabalho ou o abraço
Meu corpo de palha seca
nunca sentiu a volúpia dos bichos
Vivo abismado e só
escancarado sob a luz dos astros
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Oração a São Miguel Arcanjo
Se houver perigo esta noite,
preciso que me abrigues
Não te fies no delicado trato
que tenho com os monstros
Eles mentem
Nós mentimos, todos mentem
Se houver perigo esta noite,
não penses que sou forte
só porque vivo só
e conheço toda a ilha
e domino palavras e com elas
construo armas e escudos
Se houver perigo,
preciso que sejas meu pai,
forte, amigo,
afastando com a espada os inimigos
Preciso que pises sobre o meu terror
como pisarias mansamente
sobre um demônio adormecido
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Morro da Forca
Minha coragem me deixará leve
suspenso entre olhares abismados
Pela última vez ouço o vento
Basta uma corda, basta um salto
E nunca mais as igrejas
e nunca mais essas ruas
e nunca mais a volúpia do sol
sobre minha carne
Talvez seja só um exílio
uma leveza erguida sobre as pedras
um modo desconhecido de ser pássaro