“Paladar infantil” ou como desbravar estilos cervejeiros

Paladar infantil

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Cumprimentos, cervejeiros!

No texto de hoje vamos falar um pouco sobre a questão da adaptação do paladar ao começar a se aventurar no mundo das cervejas artesanais e nos seus mais diversos estilos.

Vamos, nessa toada, abordar principalmente a questão daquilo que popularmente se denomina de “paladar infantil”, que é, basicamente, a resistência a provar novos aromas e sabores com base no que já é familiar. Dessa maneira, temos que o termo já não é exatamente correto em sua própria definição, uma vez que ele não tem a ver com ser criança ou não, afinal, beber cerveja é algo proibido para os infantes.

A questão da discussão do paladar infantil passa, portanto, pela nossa necessidade de se ancorar no que chamamos de “zona de conforto”. E, se ela existe para outras coisas na vida, como relacionamentos pessoais e oportunidades de emprego, certamente ela se adequa ao nosso paladar, igualmente.

O ponto é que estar familiarizado com o próprio paladar no sentido de adequá-lo aquilo que é usual e trivial faz com que novas descobertas sejam sempre difíceis. Assim, quando se descortina o vasto universo das cervejas artesanais, com seus gostos e aromas peculiares e por vezes inusitados, a tarefa se torna mais difícil ainda.

Trazendo o panorama dado, o texto de hoje vai trazer algumas ponderações sobre a influência da cultura brasileira na adequação “infantil” do paladar cervejeiro, fazendo as devidas conexões com os estilos que se apresentam mais desafiadores para os destemidos a prová-los.

O paladar infantil e o paladar não-treinado

É bom destacar que o termo “paladar infantil” já retrata certa imprecisão naquilo que tende a transmitir por si só. Claro que crianças ainda estão em desenvolvimento e possuem percepção ainda em formação ou aparelhada para apreciar todos os tipos de sabores. A manutenção de “um paladar infantil” representa muito mais um hábito do adulto em não apreciar aromas e sabores mais marcantes, do que propriamente uma característica das crianças face aos mais diversos aromas e sabores.

Aliás, as crianças, quando comem muitas comidas ou bebidas excessivamente doces e sem sabores muito marcantes, evitando vegetais amargos ou azedos, assim o fazem com base nas escolhas alimentares dos pais. Já que não há nenhuma restrição para que elas não possam ingerir os mencionados alimentos ou terem predileção por coisas doces demais.

Nos adultos, o paladar infantil na verdade corresponde a um “paladar não-treinado”, ou melhor dizendo, um paladar apenas adaptado a aromas e sabores de muito tempo conhecidos e apreciados. O não-treinamento vem da não experimentação. Não se prova, logo não se conhece.

Esse não-treinamento tem uma reverberação direta na apreciação das cervejas, principalmente nos estilos mais extremos ou nos menos comuns. Até porque pela falta de experiência prévia naqueles determinados marcadores de aromas e sabores, a degustação da maioria dos estilos que fogem das tradicionais cervejas de massa resta deveras prejudicado.

Expandindo o paladar: provando e degustando estilos cervejeiros

Culturalmente, o paladar cervejeiro do brasileiro é moldado para que ele não tenha grandes desafios ao beber sua cerveja. Afinal, quanto mais gelada melhor. Assim, as papilas gustativas são anestesiadas com a baixa temperatura e qualquer coisa descerá.

Por anos e anos, décadas e décadas, talvez séculos, a noção mais básica de que a cerveja serviria apenas para refrescar, sem ter um cheiro muito característico, tampouco um sabor mais saliente, foi passado como sendo a receita do sucesso. Contudo, por trás dessa noção cultural insossa, muito se foi perdido em termos de possibilidades de degustação.

A coisa começa a mudar a partir da difusão da cultura cervejeira, um fenômeno recente, com aproximadamente 20 a 25 anos no cenário mundial, mas que ainda engatinha quando se trata de Terra Brasilis. Não devemos ter mais do que 10 anos da profusão mais acentuada da cultura cervejeira no Brasil, e ainda temos um longo caminho a ser percorrido.

Esse caminho passa justamente pela expansão do malfadado “paladar infantil” incrustrado nas degustações cervejeiras habituais. Pois, como já dito, ao não se experimentar novos aromas e novos sabores não é possível avançar, concomitantemente, na degustação de estilos cervejeiros diversos.

Sem o desafio da prova apenas se repete a referida “receita de sucesso” das grandes cervejarias de massa. Cervejas quase sem aroma (isso quando não vem com algum off-flavor desagradável) e com um paladar praticamente inerte. Pronta para ser bebida em doses cavalares e estupidamente gelada.

Estilos cervejeiros diversos, dos mais básicos aos mais extremos

Dada a pouca variação à qual o “paladar infantil” do cervejeiro médio está acostumado, é comum que a primeira inserção no mundo das artesanais seja pelas cervejas “menos complexas”, como as Weizenbier alemãs e as Witbier belgas. Elas servem para “amaciar” o degustador e apresentam aromas e sabores de fácil assimilação, banana, cravo e canela nas primeiras, e um perfil cítrico e condimentado na segunda.

Ainda assim, há de se dizer que existem alguns estilos não tão complexos ou extremos, como as Rauchbier, que mesmo assim assustam na primeira degustação quem não tem o paladar treinado. Seus aromas e sabores defumados podem ser rechaçados por quem não tem familiaridade.

Quando se passa para estilos mais extremos, em termos de amargor, acidez e percepção alcoólica o choque é ainda mais intenso. Uma Imperial IPA mais raiz com seus milhões de IBU, uma Lambic belga extremamente ácida e uma Barrel Aged com mais de 12% de ABV certamente são capazes de fazer uma pessoa com paladar infantil desistir para sempre de beber qualquer cerveja artesanal. Fazendo-os recorrer a sua bola de segurança nas cervejas de massa.

O caminho de entrada no mundo das artesanais deve ser parcimonioso, o paladar tem que seguir uma curva de crescimento em sua complexidade para não afugentar quem se dispõe a conhecer os mais diversos estilos. Nessa seara, os guias de estilo servem como um bom norte para conhecer as diferenças entre os tipos de cerveja, contudo, uma orientação mais próxima e pormenorizada de cada estilo e de suas harmonizações tende a facilitar ainda mais a tarefa de desbravar e de conhecer novos estilos de cerveja.

Saideira

Largar velhos hábitos e velhas concepções, tão arraigadas e tão condensadas em nosso próprio entendimento é uma tarefa dificílima, que beira a impossibilidade. Quando se fala de hábitos e costumes gustativos em termos cervejeiros, a cultura imposta exerce uma influência ainda maior, tornando o processo de conhecimento de novos aromas e sabores ainda mais complicado.

Abandonar o paladar infantil do cervejeiro médio e fazê-lo conhecer novos aromas e sabores por meio de novos estilos é o que faz com que a cultura da cerveja artesanal sobreviva e também evolua. Inobstante, ainda há um longo caminho a percorrer, muitas cervejas a serem bebidas e muitos gostos a serem desvendados.

Quanto mais estilos puderem ser provados e experimentados quanto mais o paladar infantil tende a ser abandonado. Junto com sua obsolescência vem a novidade e vem a vontade de conhecer mais, cada vez mais novos estilos e cada vez mais novas experiências cervejeiras!

Recomendação Musical

A recomendação musical de hoje não tem muito encaixe no contexto do tema tratado. Contudo, talvez seja uma das maiores canções de todos os tempos: Let it Be, dos Beatles.

Saúde!

 

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

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A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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