Conheça toda a história de fundação do bloco Os Cão e do carnaval da Redinha

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Este blogueiro tem um livro semipronto sobre a história da Redinha. E, claro, o carnaval é parte fundamental desse escrito. E dentro desse universo, o bloco Os Cão, que desfila nesta terça, é talvez o mais emblemático da “praia bonita”, como se referia Cascudo à Redinha.

A história do carnaval em Natal só começou em 1877, ano em que foi encontrado o primeiro registro de uma movimentação carnavalesca, segundo o pesquisador Gutenberg Costa.

Na praia da Redinha, somente nos idos da década de 1930, quando da chegada de seus veranistas, o primeiro “cordão” de carnaval – naquela época, os “blocos” eram chamados de cordões – passou pelos arruados de areia da praia.

As ideias de criação dos blocos quase sempre fluíam nos alpendres das casas da costa marítima. Assim nasceu o bloco Chiquitas Bacanas, composta por homens vestidos em roupas femininas percorrendo as principais ruas da praia, ao som de músicas executadas por instrumentos percussivos e de sopro.

O segundo bloco de veranistas e moradores da Redinha foi o Dois de Ouro, seguindo-se de Jacu no Pau.

Na década de 1960, o carnavalesco Hélio Rocha marca época fazendo prévias, criando e financiando sua própria bandinha. Percorria ruas “assaltando” bares e amigos. Vieram, então, Os Brasinhas e os Índios Tabajaras.

Em 1962, precisamente em uma terça-feira de carnaval, um grupo de amigos, moradores da Redinha, saiu bebericando nos bares e mercados da praia, quando o jovem José Gabriel, vulgo Zé Lambreta, desapareceu retornando horas depois com lama no corpo, trazendo chifres e rabo, aproveitados de galhos de mangue. Lançava-se ali o bloco mais famoso da Redinha.

Vamos então contar essa história:

OS CÃO

O bloco mais original e tradicional da Redinha nasceu da imaginação criativa de alguns de seus moradores. Numa manhã de carnaval, no distante ano de 1962, Francisco Ribamar de Brito (Dodô) e seu irmão, Armando Ferreira de Brito (o Gago), estavam com Francisco Clemente da Silva (o Chico Baé), Francisco Valdécio (Chico do Cabo) e Djalma de Andrade (Uá) quando seguiram todos para casa de José Gabriel de Góes (Zé Lambreta).

De lá, foram para o Rio Doce, chamado na época de Porto D’água, “para procurar pitu nos buracos da beira do rio”, explicou Dodô, hoje com 72 anos de idade. O intuito era assar os camarões ali mesmo, em uma pequena fogueira improvisada, para tirar o gosto da cachaça Olho D’água, que levaram para tomar em quengas de coco.

Entre um gole e outro, ao sabor do camarão assado, Chico Baé pegou um punhado de lama e passou sobre o cabelo. “Ele fez para o cabelo dele ficar estirado”, brinca Dodô. Vendo a “presepada”, Zé Lambreta teve a ideia: “Vamos se melar todinho e sair assustando o povo!”.

Na certa, Zé Lambreta não imaginaria que sua irreverência espontânea um dia, mereceria destaque em plena Sapucaí, no carnaval do Rio de Janeiro de 1998, no enredo da escola de samba Salgueiro, que homenageava os 450 anos de Natal.

Dodô conta em detalhes que Chico Baé colocou ainda dois “charutos do mangue” (sementes do mangue) na cabeça e um “rabo de salsa” atrás (uma espécie de capim de beira de rio). “Aí eu disse: ‘Tais todinho um cão’”, afirmou Dodô, dando origem ao nome do bloco.

Para incrementar a brincadeira, cada um desfilou pelas ruas da Redinha batendo em latas de goiabada, cantando: “Ainda tem cão dentro / ainda tem cão / rela rita / rita rela / ainda tem cão dentro dela”. “Já tínhamos criado todo tipo de fantasia; num tinha mais o que inventar não”, comenta Dodô, morador há mais de 60 anos da Redinha, sempre na rua José Herôncio de Melo, ainda sob a origem do bloco.

Os sete discípulos carnavalescos do “coisa ruim” pretendiam encerrar seu desfile inusitado no Mercado Público, no barraco de Dalila Januário. Mas o então administrador do Mercado, João Caetano de Barros, pediu para que não entrassem com medo de melar suas paredes. Dodô, então, no meio de seu relato ressaltou: “A gente não queria melar ninguém. Era só brincadeira sadia”.

Nos anos seguintes o número de “cãos” crescia, mas a ideia da “brincadeira sadia” de Dodô e seus amigos fora se perdendo com o tempo.

“No ano seguinte já eram cerca de 15 pessoas que se melavam de lama. O número de integrantes crescia todo ano. Aí deixei de brincar porque o povo só queria saber de se embriagar e melar parede. Eu já estava casado e preferi ficar em casa”, conta Dodô.

O pesquisador e folião do bloco por alguns anos, Gutenberg Costa, disse que no início, o bloco Os Cão, embora surgido de uma brincadeira sem compromisso, era organizado. “Não passávamos sujos pelas calçadas nem entrávamos no Mercado Público”.

FOTO: ED FERREIRA/AE.

Ele afirma que os mais antigos saíam pelas ruas carregando um saco de estopa, onde recolhiam bebidas, alimentos e até dinheiro dos veranistas que contribuíam para o carnaval daqueles nativos.

“Os veranistas já ficavam com um litro de cachaça ou algum tira-gosto do lado de fora. Quando não tinham nada, davam algum dinheiro. Infelizmente, hoje o ‘melaceiro’ que provocam está incontrolável”, lamenta o pesquisador.

Naquele primeiro dia de vida de Os Cão, os sete amigos findaram a brincadeira por volta das 11 horas, quando saíram das proximidades do Mercado em direção ao trapiche para tirar a lama. Durante a tarde, ainda iriam curtir o carnaval no bloco Os Brasinhas.

OS BRASINHAS

Havia uma revista em quadrinhos na época cujos personagens eram diabinhos, chamado Brasinhas, que deu origem ao nome do bloco. Dodô lembra com nostalgia o carnaval da época: “Todos os veranistas contribuíam com dinheiro para ajudar o bloco. Éramos 25 pessoas. Naquela época era muita gente. Na Redinha num tinha quase ninguém. A gente fazia os ‘assaltos’ (os foliões chegavam de surpresa nas casas de veraneio para beber e comer). Tinha uísque, cachaça, tudo no mundo; éramos sempre bem recebidos, mas acabou por causa de uma briga por uma pata de caranguejo, em um dos assaltos que fizemos. Os veranistas ficaram com medo de receber a gente, depois disso”.

Dodô abre um sorriso acanhado ao mostrar um dos uniformes dos Brasinhas, que guarda com orgulho: uma espécie de macacão em tecido grosso, de cor branca, com um emblema de um “B” no lado esquerdo do peito e o nome Brasinhas, em letra de forma nas costas. Ele afirma ainda que o bloco durou cerca de 10 anos.

DOIS DE OURO

O cordão ou clube Dois de Ouro, segundo memória de Dodô, foi o primeiro a desfilar pelos arruados de areia da Redinha. Os cordões eram manifestações carnavalescas ainda oriundas do pastoril. Seus integrantes eram bem organizados em uniformes coloridos e sons. O baliza ficava à frente e, com os instrumentos em mão, era quem controlava o ritmo dos foliões. Além da Redinha, o Dois de Ouro também apresentava-se no centro de Natal, nos bairros de Pajuçara e adjacências.

Dodô lembra das histórias contatas pelo pai. “Meu pai dizia que era muito bonito. Vinha gente do Pajuçara, Jenipabu e a Redinha toda participava”.

Ao comentar sobre as cores do bloco, Dodô foi repreendido pela senhora que se encontrava na casa vizinha, sentada em uma cadeira de balanço, que desde o começo escutava a conversa, vendo aquele tempo arrastado da Redinha passar. Era sua irmã, Maria Ferreira de Brito, 11 anos mais velha, que o corrige: “Não era amarela e branca, era amarela e verde a fantasia, de um cetim muito bom. No percurso, eles iam para a Estiva, a Boca da Ilha, Pajuçara. Papai passava três dias sem chegar em casa”.

O som que puxava o bloco, lembra Maria, vinha de um pandeiro, um cavaquinho e dos instrumentos que o “baliza” empunhava. “Papai era o baliza, o cara que ficava na frente, segurando uma mão de pilão de madeira, com várias fitas amarelas amarradas. Tinha também o estandarte. Lembro que era amarelo. Mas era tão lindo!”, completa Maria de Brito, tomada pelo saudosismo.

De acordo com Dodô, o pesquisador João Alfredo, também morador da Redinha, tem uma versão diferente sobre o primeiro bloco de carnaval da praia. Segundo ele, o bloco Vassourinhas foi o primeiro a desfilar pelo bairro. “O primeiro foi o Dois de Ouro. Esse Vassourinhas era de Recife, não tem nada a ver com a Redinha”, retruca Dodô.

MALANDROS DO MORRO

Um outro bloco antigo que pertenceu à memória carnavalesca da Redinha e que, segundo as lembranças de Dodô, foi o segundo bloco a desfilar por lá, foi o Malandros do Morro, fundado em 1963. Dessa vez, Dodô foi mais convicto ao lembrar das cores do bloco e não sofreu interferências da irmã, que ouvia atentamente.

“Era uma calça preta e uma camisa amarela; roupa de malandro mesmo!”. Dodô lembra ainda que no bloco tinham cerca de 15 componentes e que foi fundado por Pedro Ferreira de Brito, no Buraco do Tatu, onde hoje é a avenida desembargador José Medeiros Filho.

A memória prodigiosa de Dodô guarda segredos de histórias que nem mesmo os jornais antigos ou livros registraram. Gutenberg Costa passou longos cinco anos em intensa pesquisa em arquivos de jornais, livros, documentos, relatos e registros por mínimos que fossem para incrementar sua obra. No entanto, o pesquisador, embora tenha conversado algumas vezes com Dodô, desconhecia o bloco Malandros do Morro.


FOTO: CANINDÉ SOARES
Sérgio Vilar

Sérgio Vilar

Jornalista com alma de boteco ao som de Belchior

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