Ocupações parisienses em Maio de 68

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por Fernando Arrabal

Tradução de Wilson Coêlho

Durante aquele inesquecível mês, o que realmente aconteceu em Maio de 68 entrou na categoria de lenda ou de “gesta”. E por si mesmo fora pouco, sem gastos. Queríamos sonhar tanto que nos despertávamos depois.

Mas toda paixão não supõe um jogo com a morte? Eis porque em Moscou repetiram (como autênticos especialistas que eram; para a besta!) “maio de 68 não é revolucionário:porque não houve mortos”.

Quase incrivelmente “Maio de 68” começou em 22 de Março de 1968. Por isso seus comandos se alçaram como o “Movimento de 22 de março”. Mas mais sutilmente também se chamaram os “enragés” (raivosos), palavra que acarretou muitos problemas para encontrar sua tradução hispânica e inclusive pânica. Na verdadem a origem de ‘les enragés’ foi a lembrança do pioneiro “coro de raivosos” (que suplantou o título original de ‘coro de doutores’) da zarzuela “O rei que enraivou”. Certamente, obra-prima desconhecida na França. Como seu jocoso autor. Que não quis se chamar, como todo o mundo, Roberto. Nem ser metrossexual. Posto que se ocultou uma dezena de anos antes da inauguração, aos 17 de outubro de 1919, por Alfonso XIII, da primeira linha do metrô entre a Porta do Sol e Quatro Caminhos. E a terceira da Europa.

Era uma época, em tempos de Celia Gámez (na versão espanhola, pois na francesa é Edith Piaf), onde o outono caía na primavera. Ninguém podia dizer que era majoritário com os abstencionistas. Entre outras belezas e façanhas um par de amigos (nunca fomos mais de três), agindo mais que perfeitamente por livres, ocupamos, por exemplo, alegremente, o Colégio de Espanha da Cidade Universitária de Paris. Que permaneceu ocupado sem que nós, os ocupantes, nos déssemos conta de nada, durante um quarto de século. Mas que, paralelamente, também permaneceu tristemente desocupado para o furor dos universitários que deambulavam pela Cidade sem quarto onde dormir (diante de um colégio cheio, mas vazio).

Com ajuda do desenhista e dramaturgo Copi (sem sangue, como de costume, mas precisos) ocupamos também, por exemplo, o Teatro da Cidade Universitária. Imprudentemente, sem deixar nos assustar pelos vasos de rosas que se ergueram, ameaçantes à nossa passagem, que deve ter sido marcial.

Ao ocupar o teatro sem nenhuma oposição nos olhamos, Copi e eu, surpresos. Era tão fácil representar um papel na História. Não é por acaso que Copi era mais conhecido como comediante do que como dramaturgo. Sem termo-nos proposto, por sorte, por pura coincidencia, ocupamos o Colégio de Espanha ou da Argentina ou o Odeón ou a “Casa Brasil” (“Maison du Brésil”) e tutti quanti. Era fácil: todos estavam de acordo ou, melhor dito, ninguém se atrevia a não estar de acordo.

Os mais consequentes foram os universitários da suntuosa “Maison du Brésil”. Nos acolheram revolucionária y maravilhosamente à la Lenin! Proclamaram que “desde sempre” haviam desejado que sua casa fosse ocupada. E um deles acrescentou “e que nossos crocodrilhos sejam vermelhos”. Eles tinham colocado em exposição toda classe de pasquins, foices, bandeiras. e martelos. Imediatamente, ao sairmos, os despenduraram e continuaram, felizes e desocupados, seus afazeres universitários.

No Colégio de Espanha, depois de muitas generosas e altruistas promessas, os colegiais, mudando de ideia, queriam, nada menos que votar em assembleia geral. No mesmíssimo Salão de Atos do colégio. O “Movimento” (“os raivosos”) nos exigiu por telefone que se adiasse o dito microscópico preâmbulo e plebiscito até que chegassem as massas trabalhadoras hispánicas.

Na verdade, na manhã seguinte chegou uma multidão de operários das fábricas de automóveis com famílias e crianças. Os mais decididos vieram com uma bacia cheia de ácido sulfúrico que instalaram num sótão para acolher ao “inimigo”.
– Que, obviamente, ia nos atacar. Mas dali de cima, bem armados, o manteremos no limite.

Na manhã seguinte estava convidado pela Universidade de Viena. Ao chegar me encontrei com a surpresa de que se me acolhia, (a mim que, como Topor, nem cumpri o serviço militar) como a um “grande revolucionário pânico”. E, precisamente, quando entrei em um dos mais formosos anfiteatros da universidade, soou um hino para mim desconhecido, mas precioso. Explicou-se que era o hino nacional austríaco. Imediatamente, um de meus anfitriões subiu na carteira. Baixou as calças. E com uma precisão pasmosa se pôs a defecar como se ajudado, em sintonia, pelo hino. Terminadas a música e a ação, o público aplaudiu excessivamente.

Quando todo mundo saiu, ficamos sós no anfiteatro, meu anfitrião e eu. Com destreza admirável (e uma bolsa de plástico) retirou o produto de seu ato e, por fim, de quatro, esfregou no chão até que desapareceu a mancha.
Depois de uma curta semana em Viena, voltei à París. E, para mina surpresa, não sobrou no Colégio nenhum traço da bacia, nenhum ácido sulfúrico, nem nenhuma massa trabalhadora, nem nenhum ocupante. O Colégio estava fechado e cercado por uma barreira.

Para maior surpresa, um quarto de século depois desta desgraçada e frustrada ocupação recebi (excepcionalmente) uma ligação da Embaixada da Espanha em Paris. Uma empregada me preguntou, em nome do Senhor Embaixador, se de novo eu ia ocupar o Colégio de Espanha.

– Mas como se ele continua fechado?

Nas árvores do século XXI, graças à minha autorização (tão desnecessária como abracadabrante) pude ser reaberto com todas as honras e todo o Estado-maior.

Que pena que Copi (Raúl DamonteTaborda) se ocultara en fins de 1987! Eu me arrependo sempre. O que teria pensado este dramaturgo tão discreto (sobretodo em seus últimos hospitais) do novíssimo anúncio nas “redes sociais”: “Copi: quando morrer de aids pode ser a tua grande obra de arte”?

Em nenhuma das ditirâmbicas apologias dos excombatentes de maio de 68 figura Copi. Não sei se o tenha merecido.


Texto publicado originalmente no jornal La Tercera, aos 7 de abril de 2018.
Wilson Coêlho

Wilson Coêlho

Poeta, tradutor, palestrante, dramaturgo e escritor com 17 livros publicados, licenciado e bacharel em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela UFES, Doutor em Literatura pela Universidade Federal Fluminense e Auditor Real do Collége de Pataphysique de Paris. Tem 22 espetáculos montados com o Grupo Tarahumaras de Teatro, com participação em festivais e seminários de teatro no país e no exterior, como Espanha, Chile, Argentina, França e Cuba, ministrando palestras e oficinas. Também tem participado como jurado em concursos literários e festivais de música.

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