O misterioso homem das estrelas

PIX: 007.486.114-01

Colabore com o jornalismo independente

Desde criança Naldo era fascinado pelas estrelas. Aos 7 anos idade, sempre que podia, logo depois do jantar, escapava para a pequena colina próxima do seu quintal para vê-las mais de perto. Não se cansava de admirar aqueles pequenos pontos radiantes que enfeitavam de luz a escuridão da noite. Seus pais, a princípio, tentaram proibir aquela aventura notívaga, porém terminaram por acomodar o seu desejo e o vigiavam à distância para protegê-lo de um eventual perigo.

De longe, ali no topo daquele pequeno monte, as fronteiras entre as realidades pareciam tênues e o luzir dos olhos daquele menino, que cintilavam de deslumbramento, se confundia com o brilho estelar.

Com tamanho interesse, o destino poderia tê-lo moldado em um astrônomo, um astronauta ou até mesmo um poeta. Porém, os potenciais foram aos poucos se adequando às limitações do seu ambiente geográfico e da sua camada social, e se cristalizaram em um professor de Física de segundo grau de escola pública de uma pequena cidade do interior do Nordeste brasileiro.

Ainda que não diretamente lidasse com os astros, esta era a profissão que mais se aproximava do estudo da mecânica celeste dentro das circunstâncias que vivia. Morava na cidade mais pobre da região e não poderia se dar ao luxo de ter uma profissão que não garantisse um salário estável. O de professor, por sinal, era bastante confiável porém mínimo, mas como ele vivia de modo simples, se sentia confortável com o seu ofício.

O que gostava mesmo era de, depois do cansaço de um longo dia de trabalho, encontrar refúgio no mistério da noite e com uma luneta poderosa acompanhar a atividade dos corpos celestes.

O céu do pequeno povoado onde morava tinha noites espetaculares que, devido às nuvens escassas e à pouca iluminação artificial, revelavam no alto do firmamento uma abundância de astros.

Às vezes nas noites de lua cheia, deixava sua timidez de lado e levava sua luneta às ruas para mostrar detalhes do corpo lunar aos que passavam. Os mais diversos grupos se aproximavam dele: as crianças, para ver se conseguiam enxergar São Jorge na lua; os enamorados, para adicionar um pouco mais de romantismo àquela noite; os céticos, para enfatizar o valor da ciência e dos benefícios do razão; os poetas, para reaquecer sua inspiração; e os afeitos a conspirações, para duvidar do homem ter ido à lua.

Naldo acolhia a todos com igual calor humano. Quem o via nestes momentos, não o reconhecia. Seu usual lado taciturno desaparecia e dava lugar a um sorriso largo e a olhos cintilantes. E assim, uma vez por mês, ali naquela esquina, o seu entusiasmo ensolarava o breu da cidade, como quem provocava um encontro surreal entre a lua e o sol.

Foi um adolescente solitário e avesso aos eventos sociais onde sempre deixava transparecer um nervosismo. Para muitos era misterioso, para outros desinteressante: talvez alguém que não tivesse nada a dizer.

Com o passar dos anos e devido à sua consistente relação com os astros, uma mudança ocorreu no interior de si. Quanto mais foi se tornando íntimo das estrelas, mais começou a fazer paralelos entre a natureza do ser humano e a dos corpos celestes, e a reconhecer em si o movimento cósmico. Percebeu que as nossas locomoções mentais eram abruptas e reativas demais em comparação com o lento andamento dos astros.

Porém, também notou que no fundo de cada um de nós havia um fluxo de similar qualidade que se tornava mais evidente em momentos de silêncio e contemplação, e em instantes de entrega quando se deixa o controle de lado.

Seria este o mesmo curso vagaroso sobre o qual os poetas, os religiosos, e alguns filósofos se detêm a contemplar? Seria este o compasso sutil e sem pressa da alma? Sim. Para ele, fazia sentido chegar a estas conclusões.

A partir deste insight, passou a cultivar uma relação profunda com a movimentação cósmica em si. Como quem se aprofunda em uma prática meditativa, foi cada vez mais se ancorando naquele espaço interior, pousando no fundo de si e seu nervosismo da juventude foi ficando gradativamente longe do alcance da vista.

No início da vida adulta, com uma imprevisível força gravitacional casou-se com uma mulher, que aparentemente encarnava o seu oposto. Gostava muito de falar e agia de forma veloz. Na sua rapidez e oralidade, ela o puxava da sua concha e ele, por sua vez, a acalmava. Eram dois planetas em forma humana que se harmonizavam em uma coreografia espacial. O yin e o yang formando uma unidade.

Tiveram dois filhos. E assim, sem grandes reviravoltas no script, Naldo levou uma vida muito comum: sem ambições, além dos desejos previsíveis da sua rotina cotidiana. Para alguns, uma pessoa sem perspectiva de crescer e acomodado.

Porém, os mais atentos percebiam um inevitável aroma de satisfação interior que espontaneamente emanava dele. Na verdade, seu fascínio pelas estrelas o conectava profundamente com o viver o que gerava, no seu íntimo, uma contínua fonte de contentamento. E foi assim, até o fim da sua vida. Morreu de forma súbita, suave, e tranquila nos braços de quem amava.

Seu enterro aconteceu no início de noite, acompanhado de uma grande parte da população local que veio lhe dar adeus. Ali se encontraram familiares, ex-alunos, e pais de ex-alunos. Quando sua mulher estava prestes a colocar uma rosa sobre o caixão a ser depositado debaixo da terra, realizando, assim, o último gesto antes do encerramento da cerimônia, de repente a atenção de todos se voltou para o céu.

Por coincidência do destino, uma enorme chuva de meteoros caiu iluminando a partida de Naldo. Fios de luzes diversos surgiram no céu e se lançaram em direção ao chão numa linda coreografia iluminada. Nunca se havia visto tantas estrelas cadentes de uma só vez e por tanto tempo. Tal qual noite de Réveillon, ou como num quadro de Van Gogh, o firmamento parecia bailar com as luzes que o navegavam.

O encanto e o silêncio tomaram conta de todos. Tocados pela beleza do momento, os pensamentos se aquietaram e as palavras se extinguiram.

Aquela inesperada coincidência era tão rica de significados que a razão se perderia em infinitas elocubrações, só as intuições do coração poderiam ousar fazer sentido do que aquilo representaria e chegar perto do cerne do que ali se passava.

No semblante silencioso dos presentes se percebia um ar de tristeza, de alívio, e de paz. Aquele evento era tão agridoce: lhes lembrava não só do saudoso professor, mas também saciava a sede por pertencimento, algo que nem mesmo sabiam querer, quando colocado desta forma.

Décadas de esquecimento e abandono social acabaram gerando uma relação com a vida permeada de um endurecimento e de uma solidão onde foi preciso se tornar forte para sobreviver, e onde a relação com o mundo havia se tornado mecânica, centrada no ganha-pão e com pouco tempo para momentos de delicada contemplação.

A vida carecia de poesia e carregava uma qualidade de engrenagem e de urgência. Suas dores ignoradas pelas políticas sociais tinham sido consistentemente apagadas e suas necessidades não eram reconhecidas o que acabava gerando um sentimento entre aquela população de invisibilidade perante a realidade.

Porém, ali debaixo do deslumbrante e generoso infinito e do seu lugar “invisível” se sentiram vistos pelo inominável mistério do universo, e seu pertencimento ao Todo se tornou evidente. Visitados por um momento eterno, não mais se sentiram sós neste mundo, ignorados em suas dores e batalhas.

Tocados pela verdade da sua situação social, da perda de Naldo, e da extrema beleza do evento estelar, uma lágrima rolou dos seus olhos. Seus olhos, também, micro estelares, se reconheceram nos astros do firmamento e um sentimento de gratidão emergiu por estarem vivos e receber a visita da imensa beleza da criação. Aquele momento disse tanto que continuaram sem muito a dizer. Sem bem entender, voltaram para casa em paz, e se sentiram profundamente reconectados com o universo.

E assim, naquela noite, com a colaboração do acaso e de forma inusitada, o grande vazio existencial dos habitantes daquele pequeno vilarejo se apaziguou e a ilusão da separação se enfraqueceu.

Nos dias e noites que se passaram aparentemente nada mudou. As pessoas continuaram com sua vida de sempre. Mas a força daquele momento nunca se calou dentro dos seus corações, e em segredo nunca cessou de burilar inspirações para uma vida mais encantada.


FOTO de capa: blog Segredos do Mundo

Joseh Garcia

Joseh Garcia

Psicólogo, cineasta, músico, escritor. Doutor em Psicologia pela California Institute of Integral Studies (EUA). Co-criador do premiado filme CONSCIOUS: Fulfilling Higher Evolutionary Potential. Cantor e compositor do single Bossa a Trois e do álbum Conscious (Original Movie Soundtrack). Autor da tese Musicas a Vehicle for Self-Transformation: an organic inquiry into the experience of Rita Lee's songs e do livro A Mulher que Nunca Recebeu Flores. www.josehgarcia.com

WhatsApp
Telegram
Facebook
Twitter
LinkedIn

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Mais lidos do mês