Viana do Castelo – Portugal, 17 de Julho de 2006
O bom da MTV de Portugal é que ela ainda passa música.
E se engana quem pensa que a música de Portugal é só Fado. Também tem um bocado de Hip Hop e umas fusões curiosas de Reggae com ritmos africanos das antigas colônias africanas. No caminho do comboio entre Sintra e Lisboa, que peguei uns dois dias atrás, fui guardando na mente a forma das pichações e dos grafites que se espalhavam nos condomínios de apartamentos de não sei quantas periferias que se espalhavam pelo percurso. Bandeiras de Angola, Brasil e Portugal nas janelas mostravam que a zona urbana de Lisboa era bastante heterogênea, com margem a ritmos diversos e variações sonoras que ultrapassavam a imagem da tradicional da música portuguesa que a gente guarda no cardápio de estereótipos culturais, cultivado pelos litorais brasileiros muito em função (quero lembrar pra quem não é do século passado) do sucesso que a música “O Vira”, de Roberto Leal, fez por nossas praias. Bem… assim como a Bossa Nova não engole o Brasil, o Fado (ou o tal “vira”, que, se minhas “oiças” não me enganam, lembra um bocado a música do Minho) também não dá conta de Portugal.
O festival de Vilar de Mouros prova isso. Você nunca ouviu falar? Eu também não. Por azar, justamente no dia em que eu iria partir de volta pro Brasil, Iggy Pop e The Stooges (reunidos desde o ano passado em turnê mundial, com direito a presença dos irmãos Ron e Scott Arsherton) estaria fazendo uma apresentação nesse festival. Vilar de Mouros é uma pequena localidade que fica as margens do Rio Minho, bem perto do lugar aonde iriamos passar nossos últimos dias em Portugal (Viana do Castelo), já na fronteira norte com a Espanha. Desde 1971, três anos antes da revolução dos cravos, que derrubou a ditadura salazarista em Portugal essa espécie de versão lusitana de Woodstock é realizada. Calhou, justo nesse ano, de eu estar a poucos quilômetros da festa, mas, desgraçadamente, com uma passagem marcada num voo da TAP no mesmo dia em que um Iggy sessentão irá montar seu ritual de caos e bizarria proto punk.
Sobraria como alternativa, se tivesse setenta euros sobrando pra pagar minha entrada e a de Ana, apenas o dia do show do Sepultura, junto com Xutos e Pontapés; Monjave 3; The Vicius Five e Deluxe. Um consolo não muito instigante para quem perdeu o melhor da festa por não ter se informado o mínimo da história da contra cultura portuguesa antes de decolar do aeroporto Augusto Severo.
E deve ter sido realmente uma revolução esse festival de rock nos anos setenta. Quem viveu pode contar. Sim porque Portugal, durante a ditadura de Salazar era um Portugal muito diferente. Enquanto as meninas inglesas subiam as saias em Piccadilly Circus e as californianas tomavam ácido lisérgico, bem no cruzamento da Haight-Ashbury, na São Francisco do Summer Love, as raparigas portuguesas, vivendo a ditadura de Salazar, ainda tinham que tomar banho no balneário de Cascais com saiotes. Portugal era um país rural, com 40% da população analfabeta nos anos 50. No tempo de Salazar apenas 20% das mulheres eram empregadas e a maioria como domésticas. Era um Portugal pobre, conservador e entregue aos mesmos tipos de problemas sociais que assolam países do terceiro mundo.
Hoje as coisas parecem, ao menos a primeira vista, ter mudado. A entrada na União Europeia acelerou o processo, segundo se lê na imprensa local. Hoje há espaço para Iggy Pop nas páginas das grandes revistas e dos principais jornais. Mas, mesmo com toda a força Punk, mesmo com o Hip Hop lusitano e a influência cultural das ex-colônias colocando pimenta no molho sonoro português, ainda sinto nesse país uma incrível força de tradições antigas e profundamente enraizadas gemendo nos subterrâneos.
Pelo verniz do Portugal Punk rock parece existir ainda um Portugal arcaico, rural e conservador. Talvez seja a força da religião e do catolicismo da península ibérica que mantenha aceso esse espírito no país. Mas o catolicismo de Portugal me pareceu distinto do brasileiro. Mesmo que eu não saiba muito bem o porquê.
Ontem, quando cruzamos o país pela A1 em direção ao norte, passamos por Fátima no trajeto que nos levaria até Viana do Castelo (nunca é demais lembrar que Fátima era o nome de uma das filhas do profeta Maomé com sua primeira esposa, Kadija). Era um daqueles dias de verão com calor escaldante e sol abrasador. Ao redor da praça do santuário, local onde foi erguida a pequena capela no lugar aonde a Virgem teria aparecido para Lúcia, Jacinta e Francisco (as três crianças que aparecem de joelhos nas representações pictográficas de Nossa Senhora de Fátima), uma multidão de romeiros erguiam acampamento e se arrumavam ao redor de mesas de pedra para o almoço. Uma festa familiar bem típica, nada parecida com o que deveria ter sido o festival de Vilar de Mouros nos anos 70, eu imagino. Mas, ao contrário do que poderiam pensar alguns cristãos brasileiros mais radicais (especialmente os abstêmios), não era um piquenique a seco. Em cada mesa, junto com a comida, litros e litros de vinho eram sorvidos para comemorar o dia de sol. Afinal de contas não é o vinho a bebida sagrada dos cristãos? Em Portugal pecado mortal deve ser não tomar um bom vinho do Alentejo ou da região do Douro num dia de sol como aquele.
Mas, quando se vai para o norte é que se vê que o Deus de Portugal é bem característico. Em várias casas de Viana do Castelo (ao norte do Porto) pude ver azulejos com figuras. Não eram como os azulejos do palácio de Sintra, abstratos, mouriscos. Eram Azulejos com a imagem da Virgem. Sim, parece que o norte de Portugal é a terra da virgem. Ela está lá. Forte, personificando-se como o aspecto feminino do Deus de Abraão. Diz-se que o primeiro grande poema escrito no galaico-português foi o conjunto de Canções de Santa Maria, produzidas por Afonso X (provavelmente “para ele” e não “por ele” como teriam sido os salmos “para David” e não “De David”). No norte, se encontra, conforme dizem os mais bairristas, a origem de Portugal e essa é uma origem que envolve uma longa guerra na qual a religião se identifica com o elemento étnico que separava as tribos celtas nortistas dos mouros do sul, em tese, vindos do norte da África.
A virgem está para os cristãos como a deusa está para as antigas tribos celtas. Cheguei a pensar se a imagem dela nos azulejos do norte não seria uma contraposição bem clara aos arabescos abstratos da sala árabe no castelo de Sintra. A identificação entre a deusa e a virgem, e a relação conflituosa entre o paganismo original do povo do rei Arthur com o cristianismo emergente, já havia sido bem explorado por Marion Zimmer Bradley no seu best seller céltico-feminista As Brumas de Avalon. Mas essa é uma identificação polêmica. Fato fundamental é que para Portugal ser o que ele é hoje teve que andar entre três mundos possíveis: o mundo mulçumano, o mundo judaico-sefardita e o mundo celta-cristão (também meio germânico-visigodo). As mitologias desses três mundos de algum modo que não sei compreender bem qual, parecem que se cruzam nessa terra.
Desse confronto de forças culturais e de mitos étnicos parece ter surgido o povo português, por isso acredito que erra quem pensa que, por essas bandas, a religião é só uma questão de fé abstrata em um conceito qualquer. A religião é cantada como um componente de identidade cultural. Uma força aglutinadora de uma ancestralidade que tem cheiro de sangue, de ferro e de fogo. Não há como entender o Deus de Portugal sem compreender esse conflito. Nós brasileiros, que nos achamos tão sincréticos, capazes de ir a missa no Domingo, ao centro Espírita na Terça, ao terreiro na quarta e ao culto da Igreja Universal na quinta só para depois cair na cachaça na sexta feira, lá na “Rua do Salsa” em Ponta Negra, talvez tenhamos um pouco de dificuldade em entender isso. O fato é que eu precisaria de um pouco mais de experiência nessa terra para sentir a fundo o que é ser católico em Portugal.
Mas, para falar a verdade, amigo velho, se eu tivesse mais tempo por aqui e uns 70 euros de sobra pra gastar eu iria mesmo é ver Iggy Pop e não a missa do Domingo. Pode ter certeza.