O arado é torto, mas corta rente

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O que “Torto Arado” fez comigo foi pessoal. Extrapolou o puro deleite literário. Foi como um corte acidental no dedo – parece simples, mas machuca de uma maneira muito particular. O fio que o romance vai puxando traz amarrado a ele elementos que tangenciam minha experiência de vida do lado de cá do livro. Sim, de saída a publicação já tem um mérito que não é pouca coisa, o de colocar, inscrever, dar visualidade no terreno da literatura às comunidades rurais formadas pelas mais humildes famílias de pequenos agricultores, muitas delas uma continuação dos antepassados escravizados, que para o sertão brasileiro foram trazidos na marra. Pessoas sem outra opção que não fosse construir uma nova identidade uma vez que a anterior foi praticamente apagada no processo. A dificuldade de se construir uma identidade contra todos os empecilhos – do clima, da natureza, da miséria, da dominação agrária e outros, numa escala que começa no ambiente e se agiganta até aspectos sociais e humanos – é um dos pilares do romance.

Duas irmãs, Bibiana e Belonísia, centralizam a narração que mostra como essas pessoas veem e se colocam num mundo precário, primário e rústico, não obstante rico em expressão cultural ligada à experiência direta com a terra, do interior da Bahia. Mas poderia ser de Pernambuco, da Paraíba, do Rio Grande do Norte. E aqui preciso voltar ao ponto onde “Torto Arado”, o agora popular livro de estreia de Itamar Vieira Junior, transforma-se pra mim em um assunto absolutamente pessoal. Um episódio logo no início do livro retira das irmãs muito do já restrito poder de expressão que elas têm para se colocar no próprio espaço, mesmo no pequeno universo onde transitam, um sítio na área rural, no início sem nem ao menos visitas eventuais à sede do município. O que causa esse incidente é um antigo punhal de cabo, que parece perolado, que as meninas encontram nos guardados da avó. O punhal é qual um objeto recoberto por uma aura sagrada, por guardar em si mesmo parte da memória da trajetória da família. É por causa dele – e da curiosidade em torno dele – que Belonísia, a mais forte e interessante das duas personagens, perde a capacidade de falar à maneira normal.

Um dia, na minha infância, eu também achei um punhal muito parecido com esse em casa. Perguntei sobre ele à minha mãe que, à maneira das mães, mandou-me tomar cuidado e distância do objeto, que foi logo recolhendo, mas me explicou que era uma relíquia do meu avô que ela guardava. Não sei se ainda guarda. Mas o punhal me ficou na memória. Numa casa onde tudo era básico, mínimo, sem adornos, o punhal era bonito, elegante, algo sofisticado. Havia ali alguma forma de excesso que não fazia parte do nosso mundo que mesmo já urbanizado ainda guardava muito das restrições rurais. Olhei para ele sob um certo ângulo fetichista já que não se tratava absolutamente de algo comum. Sobretudo numa casa pobre em objetos como era a minha naquele momento da minha infância. O punhal destoava e não apenas por ser um objeto potencialmente violento, mas pela própria aparência de algo rico, belo, requintado.

Ao começar a ler o “Torto Arado” e encontrar o trecho em que o punhal torna-se quase um personagem eu dei um salto. Era como um sinal a mais, o mais evidente de todos, em um livro que se situa em uma realidade geral e particular que também me evocava a infância. Meu pai era feirante e fazia regularmente um comércio de frutas e verduras que ia comprar nos sítios das redondezas – na área rural, portanto – e revendia na feira da cidade ou no Ceasa de Campina Grande. Se fossem goiabas, a mercadoria iria para uma conhecida fábrica de confeitos em Natal. Com isso ele estava sempre indo às propriedades rurais do entorno da nossa cidade, Parelhas, no interior do RN. E eu cansei de fazer essas viagens com ele, na carroceria das caminhonetes que fretava, já que não tinha um transporte próprio. Nessa condição, vi muitas e muitas comunidades rurais semelhantes à que está nas páginas de “Torto Arado”. Esbarrei em muitas Bibianas, Belonísias, Zecas e Donanas pelos sítios onde ia com meu pai. Meus próprios avós, tanto do lado materno quanto do paterno, eram vizinhos de sítios nas comunidades Olho d’Água e Timbaúba. Cultivavam pequenos roçados de gêneros alimentícios que eram consumidos pelas próprias famílias.

Qual a distinção básica entre eles e os personagens do romance de Itamar? Uma só, mas que faz toda diferença. A família de Belonísia é o que a gente chamava naquela época de “morador”, grupos de pessoas que não tendo terra pra plantar o mínimo para sobreviver vai morar na propriedade alheia e trabalhar para quem é o dono do sítio. Meus avós e aquelas pessoas que eu via quando saía pelos sítios com meu pai eram pequenos proprietários de terras. Os personagens de “Torto Arado” só podem sonhar em ter essa condição. Mas eu os conheço, porque mesmo os donos de pequenos sítios tinham uma cultura comum com os “moradores”.

O mérito especial do livro a que me referi lá no alto é colocar na literatura esse tipo de brasileiro. Minha enciclopédia pessoal de livros e autores pode não ser completa o suficiente para me permitir dizer com todas as letras, mas desconfio muito seriamente que “esse povo” não estava nos livros dessa maneira. Foi obra de Itamar e ele merece todo esse sucesso que está fazendo nem que fosse só por este feito. O Brasil mais urbano de um tempo mais nefasto como o de hoje está lendo as histórias de comunidades que sempre se negou a ver – e quando as percebeu foi olhando de banda pra não se demorar muito na contemplação incômoda.

O livro é pungente ao entrar nessas vidas para além do painel social que constrói. Não fica só na terra; escava e expõe a necessidade de expressão que essas populações, como qualquer outra, tem, mas lhe é negada. Os cortes feitos por aquele punhal vão se repetindo ao longo do livro, representando novas restrições que precisam ser removidas do caminho quando a família vai se desdobrando no tempo que não para e no espaço que permanece o mesmo. As meninas crescem, casam, têm filhos mas encontram na ordem tradicional em volta os limites sobre até onde podem ir. A expansão se é permitida de forma mágica, por meio dos rituais semelhantes à umbanda primordial que a espiritualidade inevitável espalha como adubo sobre as terras alheias de que a família precisa a todo custo se apropriar como sua. O fluxo verbal que cada uma das irmãs entoa ao longo das duas primeiras partes como uma cantiga telúrica, um dramático cordel em prosa, vem embebido na legitimidade literária mais verdadeira. Itamar construiu um discurso que remete à formação da consciência de cada uma delas sobre a inteireza de suas próprias pessoas e do ambiente ao redor.

Há momentos comoventes para além da visibilidade oferecida pelo escritor como uma bandeja de possibilidades para a fome de presença de tais populações. Elas passam não apenas a ser notadas, mas adquirem o gigantismo que as narrações conferem aos sujeitos sociais. Não à toa têm tido o sucesso nas livrarias e no boca-a-boca.

Abordar essa invisibilidade que “Torto Arado” rompe me lembra outro episódio pessoal que também posso colocar na mesma gaveta onde guardo minhas conexões com o livro do momento. Ao cursar a disciplina de antropologia na UFRN, em 1985, fomos eu e minha turma certo dia levados ao Museu Câmara Cascudo, em Natal. Era uma aula diferente que a professora propunha, mas tive ali um momento de extrema revolta que ficou somente comigo – a não ser no texto que tivemos de redigir sobre a visita a pedido da professora e onde registrei meu estranhamento. Vi no museu natalense um banco de madeira desses que se encontra em qualquer casa de sítio na região do Seridó. Desse compridos, com dois pares de pés nas pontas, e que serve para dar descanso a muita gente de uma vez, usado por exemplo em casas mais rústicas também nas cidades em dias de feira, quando parte da família que vive na zona rural vem para adquirir suas compras semanais ou revender sua produção. O que me incomodou foi ver no museu um móvel rural que, para mim, continuava fazendo parte do cotidiano contemporâneo das pessoas da minha cidade, fosse no campo ou na zona urbana. Não por acaso, há um desses até hoje na casa onde mora minha cunhada Sandra Medeiros, na rua principal de Acari, no RN. O que para os meus colegas de classe média soava como uma curiosa peça de mobiliário rústico, ao meu olhar era algo tão comum que não deveria estar ali. Deve haver no terreno acadêmico do comportamento e dos estudos culturais algum ramo que estuda esse tipo de empatia entre uma pessoa e um objeto, intermediada pelas circunstâncias sociais em que ambos estão situados.

Ler “Torto Arado” foi como ver devolvido ritualmente às salas do interior, fosse no sítio ou na pequena cidade, o banco que a universidade de lá retirou para manter morto num museu de curiosidades. Eu me senti justiçado, se posso dizer assim. Esse pequeno episódio, espero, justifica minha alegria em ver representados em literatura essa parcela do mundo que estava fora dela. Finalmente esse segmento pleno de brasilidade entrou, por meio do livro de Itamar Vieira, nessa sala onde antes sua presença não era esperada, aceita ou bem-vinda.

Não estou esquecendo a família de Fabiano em “Vidas Secas” ou os desafortunados cobertos de açúcar dos engenhos de José Lins, tampouco os caboclos que dão colorido especial às sagas de Jorge Amado que tanto me agradaram, mas é diferente: o tipo específico de agricultor invisível que Itamar Vieira colocou para dentro de casa no “Torto Arado”, ao que me consta, ainda estava ao relento até ele tomar essa iniciativa. Porque até então era vista como uma gente menor, sem direito sequer a aspirar a um heroísmo de romance de cavalaria. Ou a um protagonismo de literatura modernista destinada a abrir valas de consciência social numa classe média urbana e letrada. Bibiana e Belonísia são personagens aquém daqueles outros. A poeira comum que os cobre só os admitia quando muito como figuras de apoio numa literatura regionalista. Eram sem terra e sem letra, mas a roda do tempo não para e a literatura faz sua parte. O arado é torto, mas não adianta: de alguma maneira a voz suprimida se fará ouvir, enfim, reta.


CRÉDITO DA FOTO: Giovanni Marrozzini

Tião Vicente

Tião Vicente

Jornalista e servidor público (às vezes essas duas atribuições se confundem). Nasceu por acaso em Caicó, cresceu em Parelhas, estudou em Recife e Natal, aprendeu jornalismo e juventude nesta última, cansou um pouco e mudou para Brasília, trabalhou em edição em jornal e TV até fazer um concurso público para entregar esse brilhante currículo à emissora de tevê da Câmara dos Deputados. Tem funcionado até hoje. Por fora, pratica essas infidelidades paraliterárias. Tem uma central de blogs, quase todos esquecidos (para referência, arrisque novosopaodotiao.blogspot.com).

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1 Comment

  • Gildásio

    Texto muito bem escrito e Impressionante.

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