Outro dia me disseram que eu sou “difícil de entender”. Que meu tempo assusta. Que a minha autonomia parece uma ofensa. E eu nem estava armada. Só com a agenda cheia e a cara lavada. E talvez esse seja o problema: não tem disfarce. Eu sou o que sou, todos os dias, sem muito intervalo comercial. Eu acordo cedo, faço mil coisas, me viro, invento, carrego o mundo, respondo e-mails no uber, edito projeto enquanto estou no banheiro, penso em soluções enquanto corto cebola. E, ainda assim, preciso me justificar.
Me justificar por ser uma mulher que não precisa, mas gostaria. Que não depende, mas adoraria. Que não pede, mas sente falta quando não tem.
Porque, veja bem, a independência virou pecado. Um veneno. Algo a ser temido como se fosse uma bomba-relógio que vai explodir a qualquer contradição. E quando eu ouso falar que tô cansada? Vem um silêncio constrangedor, como se eu tivesse dito que odeio bebês ou que nunca vi “Titanic”. O cansaço da mulher que faz tudo não comove ninguém. É um cansaço que a gente tem que carregar calada pra não parecer fraca, ingrata ou – Deus me livre – desequilibrada.
Eu tenho um currículo que assusta, uma vida que gira, um telefone que toca. E ainda assim, sou eu quem ouve: “Você podia estar mais presente”, “Você devia se abrir mais”, “Você é fechada demais”, “Você trabalha muito”. Ah, me desculpa por tentar manter minhas contas em dia, minha dignidade inteira e minha sanidade mais ou menos. Me desculpa por não estar disponível emocionalmente pra carregar mais um ser humano além de mim. Ou melhor, dois: eu e minha autocobrança.
Porque ninguém conta que a gente nasce mulher e vira polvo por necessidade. E ainda fazem parecer que foi escolha. Que foi capricho. Como se eu acordasse todas as manhãs e pensasse: “Ah, hoje vou resolver tudo sozinha só de birra”. Como se eu tivesse recusado ajuda, como se eu tivesse negado amor. Quando, na verdade, ninguém quis dividir a conta comigo. O aluguel da vida, a faxina emocional, os boletos dos afetos. Ninguém quis fazer parte do todo – só do fácil. A parte que brilha, que aparece, que posa pra foto. Mas a parte suada, cheia de dúvidas, com cabelo preso e olheira? Essa é minha.
E aí entra o dilema: conciliar vontade e trabalho. Porque eu tenho vontade. De estar com alguém. De ser cuidada. De sentar e chorar sem ter que explicar. Mas também tenho que pagar os boletos, fazer a apresentação, gerenciar a crise, responder a planilha. E as vontades ficam ali, na fila de espera do RH da minha alma. Quando der, eu lido com elas. Se der.
E tem mais: encontrar alguém que queira cuidar da gente sem querer desmontar a gente é um milagre. Porque o que mais tem é homem querendo nos reduzir pra caber na zona de conforto dele. “Você podia trabalhar menos”, “Você podia viajar menos”, “Você podia ser mais tranquila”. Claro, querido, e você podia ser mais inteligente, mais emocionalmente disponível e menos carente do meu tempo. Mas a gente não é o que o outro gostaria que a gente fosse. E é por isso que não dá.
Dizem que sou arrogante porque não imploro por atenção. Que sou fria porque não envio mensagem carente às três da manhã. Mas o que eu sou, de verdade, é ocupada. E inteira. E, sim, às vezes solitária pra caramba. Mas eu me basto. E isso é perigoso num mundo que ensina mulheres a se desmancharem por migalha.
Tem dias que eu queria só um colo. Não um coach. Não um julgamento. Não um manual de instruções. Só um colo que não tente me ensinar a ser menos. Um colo que entenda que eu me construí com pedaços duros e dias difíceis, e que é justamente por isso que eu não aceito qualquer coisa. Porque eu me basto, mas eu queria também me somar. Dividir. Compartilhar o peso e as risadas.
Mas é difícil encontrar quem não tenha medo de mulher que faz tudo. Quem não confunda autonomia com invulnerabilidade. Quem não queira ser herói, mas parceiro. Quem não se assuste com a ideia de que talvez, só talvez, cuidar da gente seja também aprender a ser cuidado. Porque não é que eu não precise de ninguém. É que eu precisei de mim por tanto tempo, que agora exijo presença inteira. Não quero alguém que venha pra pedir senha no meu tempo. Quero alguém que entre, tire o sapato, me abrace e diga: “Deixa que hoje eu fecho a conta”.
E sabe por que é tão difícil? Porque os homens não querem entender. Não é que eles não consigam, é que não convém. É mais fácil fingir que a gente complica demais do que admitir que eles nunca aprenderam a lidar com mulher que não precisa deles pra nada. O problema não é que somos demais. É que eles foram ensinados a gostar de mulher de menos.
Homem prefere o controle à companhia. Prefere o aplauso ao diálogo. Eles querem estar ao lado de alguém que admire, sim, mas que não ofusque. Que brilhe, mas só quando ele estiver iluminado. E aí, quando aparece uma mulher que não espera por permissão, que não pergunta se pode, que não reduz a própria luz, ele se sente ameaçado. E disfarça isso com palavras como “intensa”, “difícil”, “confusa”, “difícil de agradar”. Como se o problema fosse a gente.
Eles não querem entender porque entender significaria rever privilégios. Dividir a atenção. Reaprender a se relacionar sem a certeza do pedestal. Entender uma mulher que faz tudo exige sair da posição de herói e aceitar a de parceiro. E convenhamos: parceiro é quem se molha na mesma tempestade, não quem aparece com um guarda-chuva furado depois da chuva passar.
E tem também o medo. Medo de não serem necessários. De não terem função. De não saberem o que fazer com uma mulher que não precisa ser salva, só acolhida. Porque é mais fácil lidar com quem depende do que com quem escolhe. Escolher alguém é muito mais poderoso do que precisar de alguém. E isso assusta.
Quantos homens você conhece que sustentam emocionalmente uma mulher que faz mais que eles? Que ganham menos, mas não se sentem diminuídos? Que têm orgulho do sucesso dela sem precisar diminuir o próprio? São poucos. Porque a masculinidade frágil não tolera igualdade – ela precisa da fantasia da superioridade pra sobreviver.
E aí eles correm. Ou sabotam. Ou disfarçam a inveja com críticas veladas. “Você trabalha demais.” “Você devia descansar mais.” “Você não acha que tá exagerando?” Não, querido. Eu tô é sobrevivendo. E tentando ser feliz nesse intervalo entre um compromisso e outro.
Porque, no fundo, o que assusta mesmo é a ideia de que a gente pode seguir sem eles. Que a gente pode ser feliz sem roteiro de comédia romântica. Que a gente tá cansada de ser a mulher que encaixa. Agora a gente quer ser a mulher que transborda – e que encontra alguém que saiba nadar nesse excesso, e não queira construir uma represa.
Mas não é todo homem que está pronto pra isso. Na verdade, a maioria nem quer estar. Preferem acreditar que somos problema. Que somos difíceis. Quando, na real, só queremos o básico: parceria, escuta, presença. Mas isso exige disponibilidade emocional – algo que poucos têm tempo de cultivar entre o futebol, o ego e a dificuldade em lidar com o próprio silêncio.
Então a gente segue. Segue rindo, trabalhando, chorando de vez em quando no chuveiro, comprando vinho com cashback, mandando memes pras amigas, e esperando – com menos ansiedade e mais critério – alguém que entenda que mulher inteira não é problema. É presente.
E se ele não vier, tudo bem. A gente segue com as próprias pernas. Só que, de vez em quando, seria bom descansar num colo que não cobre, que não mede, que não tenta decifrar a gente como se fôssemos um enigma. Só alguém que fique. Mesmo quando a gente está em mil partes. Mesmo quando a gente não tem tempo de se explicar.
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Mais uma vez, disse tudo . Parabéeeeens 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻