A cultura, a língua e o pensamento atuam uns sobre os outros em um processo contínuo de retroalimentação. A Semântica Cultural, em sua corrente de Contextos e Cenários, chama de metáfora a “utilização de uma expressão (elemento) que apresenta um sentido costumeiro bem definido em uma comunidade de falantes com outro sentido diverso daquele, mas presente nessa mesma comunidade” (FERRAREZI JR., 2010). É justamente esse deslocamento de sentido produzido pela metáfora que permite o seu uso figurativo (conotativo). As construções metafóricas mobilizam as mais diversas emoções, sensações e percepções nas expressões linguísticas.
Pois bem. A anatomia humana que circula na fala popular demonstra uma riqueza extraordinária de ampliação e derivação de sentidos. No belo livro “Anatomia Humana Coloquial no Brasil”, os autores Gustavo Barbalho e Rodrigo Freitas trazem inúmeros exemplos coletados da tradição oral popular, de músicas, da literatura e de pesquisadoras consagradas como a queridíssima Maria do Socorro Aragão. Selecionei alguns termos retirados do livro para compartilhar e demonstrar a riqueza vocabular que sai da matraca (boca) da gente. Em alguns itens, com a devida vênia, acrescentei alguma contribuição (origem, por exemplo), além dos vocábulos “cangaços”, “maçaroca” e “malacas”.
Vejamos algumas definições que contemplam o corpo humano da cabeça aos pés.
Cocoruto (cucuruto) = abóbada craniana; o alto da cabeça. A origem é considerada obscura. Para Cunha (2010), provavelmente relaciona-se com coco, no sentido de cabeça.
Quengo = cabeça; por associação com o endocarpo do coco-da-baía, tipo de coco mais popular do Brasil.
Moleira = nos bebês, espaço membranoso entre os ossos do crânio do bebê que ainda não se encontra ossificado.
Miolo = cérebro; por ampliação de sentido para denominar a parte interior de qualquer coisa.
Maçaroca = punhado de cabelo; cabelos assanhados. Inspirado nos rolos de cabelos desalinhados na cauda das reses bovinas.
Pinta do olho; menina dos olhos = pupila. Mas por que menina dos olhos? Pupila, em latim significa menina; órfão menor a cargo de um tutor.
Pestanas = cílios.
Maça do rosto = a parte saliente da face, formada pelo osso malar, osso zigomático.
Pau do nariz; pau da venta = septo nasal; dorso do nariz.
Céu da boca = palato; abóbada palatina.
Queixá = o dente 3º molar.
Campainha = úvula; apêndice carnudo, pendente da borda do palato mole, à entrada da garganta. Campa significa “sino”. Daí, campainha: “sineta” ou “pequeno sino”.
Gorgomio, gorgomilo = entrada do esôfago e laringe; garganta. A motivação do nome é onomatopaica (ou seja, tenta reproduzir um som natural). O radical garg- (variante gorg-) busca imitar o som da água durante o gargarejo ou o som da garganta, quando algum alimento é engolido às pressas.
Pé do ouvido = região mastoidea, situada por trás da orelha.
Oiça (variante de ouça) = o ouvido; a audição.
Nó da goela; pomo de adão = proeminência laríngea onde se encontram as cordas vocais. Pomo vem do latim: fruta com caroço.
Tábua do queixo = mandíbula.
Toitiço, toutiço; cachaço; cangote = região cervical posterior; pescoço. Cangote vem do espanhol “cogote” (nuca), com influência da palavra “canga”, que designa “peça de madeira com que se prende os bois pelo pescoço e os liga ao carro ou arado”.
Caixa dos peitos = tórax.
Malacas = mamas volumosas, frouxas, caídas. Do latim, malacia: suave, macio.
Asa: escápula. Osso triangular que compõe (com a clavícula e com o úmero) a articulação do ombro.
Pé da barriga = parte inferior do abdome; região púbica.
Bofe: pulmão. Ao expelir o ar fortemente pela boca, tem-se o “bufar (< bofar)”. A origem seria, então, derivada da imitação desse som.
Boca do estômago = região superior e mediana do abdome; região epigástrica.
Mãe do corpo = útero. Curiosidade: essa foi uma das respostas obtidas no questionário do Atlas Linguístico da Paraíba (1984), quando se perguntou aos informantes da zona rural: como se chama a parte do corpo da mãe onde fica o nenê/bebê antes de nascer?
Quartos, cadeiras = pelve; cavidade no extremo inferior do tronco.
Lombo = região lombar. Por extensão de sentido: as nádegas, o bumbum.
Tripas = intestino.
Tripa gaiteira = reto.
As partes, os troços, os cangaços = região genital.
Rego, regada = fenda interglútea (entre as nádegas). Rego também pode significar vala para escoamento de água. Ah, tá.
Fato = vísceras de animais.
Fel = bile; substância amarelo-esverdeada secretada pelo fígado dos vertebrados.
Popa = musculatura glútea.
Pelanca = pele, geralmente flácida e caída.
Pissuídos (variante de “possuídos”) = as partes genitais masculinas.
Bolacha do joelho = patela. O osso situado na parte anterior do joelho.
Batata da perna = panturrilha. Músculos do compartimento posterior da perna.
Mocotó = tornozelo.
Planta do pé = face plantar do pé. Ora, a parte do pé que assenta no chão. Legal, né?
Por fim, alguns podem estar pensando: e quanto aos outros termos populares das partes íntimas do homem e da mulher? Sim, existem muitos nomes figurativos além desses que vocês estão pensando agora. Gustavo Barbalho e Rodrigo Freitas coletaram nada mais nada menos que 276 palavras para o órgão genital masculino e 425 palavras para o pudendo feminino.
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BIBLIOGRAFIA
ARAGÃO, Maria do Socorro Silva do. Dialetologia. João Pessoa, abr. 2015. 9 p. Notas de aula da disciplina Linguagem Regional Popular – Doutorado em Letras/UFPB.
FERRAREZI JR., Celso. Introdução à semântica de contextos e cenários: de la langue à la vie. Campinas/SP: Mercado das Letras, 2010.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010.
EMILIANO, Gustavo Barbalho Guedes; BISPO, Rodrigues Freitas Monte. Anatomia Humana Coloquial do Brasil: registros na tradição oral, música e literatura. Natal, RN: CJA Edições, 2016.