Mulher Maravilha: um grande filme, mas…

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Novo filme da DC aponta para um futuro promissor do seu universo cinematográfico, mas…

Desde os primeiros segundos de “Mulher Maravilha” (EUA, 2017) fica evidente: a diretora Patty Jenkins sabe o que está fazendo. Aqui não temos uma trama ultrafragmentada e recheada de pressupostos (que só quem leu os quadrinhos vai entender), como infelizmente aconteceu em “Batman vs Superman”. Não. Patty Jenkins foca a ação em Diana Prince. Apenas em Diana Prince. E acerta.

O que vemos no filme é uma trama mais organizada e inteligível que qualquer outro filme da DC, com o mérito de reorganizar também a famosa bagunça na cronologia da super-heroína. Explico: Mulher Maravilha sempre foi um gibi irregular, cheio de reboots, injustiçado a ponto de até sua história de origem ser constantemente alterada.

Pois bem, o filme organiza isso tudo e nos conta uma bela história de autodescoberta.

Diana (Gal Gadot) é filha da rainha Hipólita, a soberana máxima das amazonas que vivem isoladas do mundo na Ilha Temiscira (também conhecida como Ilha Paraíso). Sua vontade de lutar como suas companheiras entra em choque com a superproteção da mãe, que não quer sequer que a filha seja treinada como uma amazona.

O desejo da mãe, obviamente, não impede a impetuosa Diana de treinar secretamente e se tornar uma grande guerreira. Até que um dia um avião cai próximo à ilha carregando Steve Trevor (Chris Pine em atuação mediana), oficial que está infiltrado no exército inimigo para espionar a criação de uma nova arma de destruição em massa.

Neste ponto, as amazonas acabam descobrindo que o mundo está em guerra — e isso pode ser um indício forte de que Ares, o deus da guerra, antigo inimigo derrotado pelas amazonas, está de volta. É para caçar e aniquilar Ares que Diana recebe a permissão de deixar a Ilha Paraíso e acompanhar Steve Trevor até o front de batalha.

Quando deixamos a Ilha Paraíso, caímos diretamente numa Europa devastada pela Primeira Guerra Mundial. Aos poucos, a ingênua Diana passa a entender melhor como a Humanidade funciona — e a se questionar se a Humanidade merece sua ajuda. É sempre neste ponto que os heróis da DC se diferenciam dos demais: na DC não temos seres superpoderosos às voltas com conflitos cotidianos; temos deuses que se vêem em conflito com sua própria divindade. E Diana não é diferente.

O tempo todo o filme aponta para a existência de um Ares etéreo — ou seja, um vilão que não se personifica, mas está dentro de cada ser humano. O grande desafio de Diana é manter a fé em seus princípios; manter a ideia cada vez mais ingênua de que é possível trazer a paz para o mundo apenas com a destruição do suposto arquiteto de todo aquele conflito.

Diante da desconfiança de todos em suas crenças (vai tentar explicar para um soldado no front de batalha que ele só está lutando porque sofre a influência negativa do antigo deus da guerra), Diana trava um caminho que muitas mulheres conhecem: ela tem que provar o seu valor para ser ouvida; e depois provar ainda mais para continuar sendo ouvida; e depois continuar provando e provando e provando se quiser ter alguma voz.

Gal Gadot: mais Mulher Maravilha impossível

Mais uma vez Gal Gadot encarna com perfeição a mais icônica das mulheres do universo DC. A fragilidade em seu olhar quando ainda é uma ingênua aprendiz de amazona e a força com que enfrenta seu mais poderoso oponente no ato final do filme vêm da mesma atriz.

Gal Gadot não interpreta a Mulher Maravilha, Gal Gadot é a Mulher Maravilha. Trata-se daquele raro caso em que o personagem encontra seu intérprete — como aconteceu com Wolverine e Hugh Jackman, por exemplo. Eu já tinha dito aqui antes que Gal Gadot era a melhor coisa de “Batman vs Superman”. Pois bem, a façanha se repete: Gal Gadot é a melhor coisa de “Mulher Maravilha”.

Ela é dócil e feroz ao mesmo tempo, e sabe dosar esses contrastes com maestria. No fim, o que se vê é um personagem totalmente anacrônico e inverossímil ganhar vida, se tornar crível, ser acreditado. E isso não é para muitos.

O filme tem excelentes efeitos especiais, uma direção de arte que impressiona e locações de cair o queixo. A Ilha Paraíso, por si só, já vale o ingresso. As batalhas milimetricamente coreografadas das amazonas enchem os olhos, ainda mais quando vemos Diana e suas armas em ação (o laço da verdade, os braceletes, o escudo, a espada, o olhar — tá tudo lá).

“Mulher Maravilha” mostra que a DC acertou o tom de suas produções. Ficou apenas o melhor dos outros filmes (o vigor narrativo, o visual único, os heróis icônicos), mas agora temos uma história que equilibra muito bem os pontos dramáticos para entregar uma grande aventura.

Tudo se encaixa muito bem no filme até o surpreendente final. É a prova do bem-vindo amadurecimento do universo cinematográfico da DC. Um grande filme, sem dúvidas. Mas…

Mas… sempre tem um mas…

É impossível assistir a “Mulher Maravilha” sem problematizar um pouquinho. Primeiro porque trata-se do primeiro grande filme de super-heróis protagonizado por uma mulher — se lembrarmos que o marco inicial dessa fase de grandes filmes de super-heróis foi “Homem de Ferro” de 2008, são quase dez anos para uma mulher ser finalmente a estrela principal.

Segundo porque a Mulher Maravilha é a primeira super-heroína de todas. Seu criador, o psicólogo William Moulton Marston, queria um personagem que vencesse não pela força bruta mas sim pelo amor. Reza a lenda que:

William Moulton Marston, um psicólogo já famoso por inventar o polígrafo (precursor mecânico do laço mágico), teve a ideia para um tipo novo de super-herói, um que triunfaria não com punhos ou poderes, mas com amor. “Bom”, disse Elizabeth Moulton, sua esposa, “Mas faça-o uma mulher”.

William Moulton Marston era apoiador aberto de causas feministas. E é por isso que a Mulher Maravilha caiu nas mãos certas. Criada em cima do ideal feminista, para mostrar que uma mulher é capaz de coisas extraordinárias quase descobre o próprio poder, hoje é difícil engolir alguns deslizes do seu primeiro grande filme-solo.

Eis alguns deslizes da produção:

1. A cena clássica do quase beijo acontece entre Diana e Steve. Em dado momento, ela tenta se desvencilhar e ele a segura pelo braço para puxá-la pra perto. Era pra ser romântico, se não soubéssemos todos nós já que isso na verdade se chama assédio. A cena clichê se torna mais incomoda ainda quando acontece logo depois de Diana demonstrar um grande poder físico destruindo alguns prédios. Ou seja: o cara sabe que ela é superpoderosa e pode esmagar sua cabeça com um peteleco, mas mesmo assim não se intimida em puxá-la pelo braço. Difícil imaginar qualquer ser humano de posse de suas faculdades mentais fazendo isso com o Superman, por exemplo.

2. Todos, absolutamente todos os homens que vêem Diana pela primeira vez elogiam sua beleza. Não chega a ser um problema, uma vez que o filme se passa no início do século XX e isso é um retrato bem fiel da sociedade machista daquela época. O problema maior é que Diana não parece incomodada com o fato de ter seu valor medido por sua aparência. Em nenhum momento, a super-heroína faz cara feia, ou repreende, ou demonstra que gostaria de ser tratada como um ser humano e não como um pedaço de carne.

3. Piadas sexistas sempre haverão. Mas é preciso muito culhão pra olhar para um ser superpoderoso como a Mulher Maravilha e dizer: Tem uma ilha toda cheia de mulheres como você? Por favor, me leve pra lá. Pois é, um homem fala isso no filme. E ele nem é o vilão. Faz parte dos mocinhos da trama. O alívio cômico esbarra num problema: nem diante de uma mulher que esmaga prédios com um chute, os homens se intimidam em fazer piadas sexistas. Não sei como Patty Jenkins deixou isso passar.

4. A primeira coisa que Steve Trevor faz ao chegar em Londres com Diana é levá-la para comprar “roupas mais adequadas”. Inverta a cena: Louis Lane levando Superman para fazer compras antes de salvar o mundo. Por que ele não pode se vestir daquele jeito em Londres! Mais uma vez, a cena se justifica pela época: é início do século e uma mulher em trajes sumários realmente chamaria muita atenção. Mas irrita como Diana não repreende Steve Trevor em nenhum momento. Ela apenas aceita que está mal vestida e se dobra à vontade dele. Simples assim.

5. Todos subestimam Diana. O tempo todo. Em todas as situações. Primeiro, tratam a heroína como louca quando ela credita a um deus grego a origem da Primeira Guerra Mundial. Mais à frente, os homens ficam tentando protegê-la o tempo todo — notadamente Steve Trevor, que mesmo diante da demonstração de poder devastador que a Mulher Maravilha dá no front insiste em dar ordens do tipo “Não, você não vai, é muito perigoso”. Diana, mais uma vez, não protesta.

O filme não tem obrigação nenhuma de ser um baluarte no debate de igualdade de gêneros. Mas veja bem: Diana foi criada numa ilha que só tem mulheres poderosas, numa sociedade calcada na igualdade, em que todas existem em plenitude. Combinando isso à sua personalidade forte, era de se esperar que ela reagisse com mais ímpeto quando, por exemplo, generais aliados protestam por haver uma mulher dentro da sua reunião. Mas não. Paciente, quase subserviente, Diana aceita todas essas agressões machistas com uma parcimônia totalmente paradoxal à sua personalidade.

Ao menos uma cena em que a Mulher Maravilha se insurgisse contra o patriarcado. Ao menos uma. E o filme ganharia outra camada, alcançaria outro nível.

A Mulher Maravilha é um símbolo, um ícone. Não apenas uma personagem. Ela faz parte da Trindade da DC, entidade que reúne os três super-heróis mais icônicos do planeta. Junto a Superman e Batman, a Mulher Maravilha é a personificação de uma luta. E o feminismo está no cerne da sua criação. A DC perdeu uma grande oportunidade de provocar um debate.

Batman já foi protagonista de 8 filmes e tem mais um na agulha. Superman protagonizou 7 películas, com mais uma na agulha. Mesmo tendo a mesma importância de seus companheiros, a Mulher Maravilha só chegou aos cinemas agora: mais de 70 anos após a sua criação, e quase quarenta anos após o primeiro filme do Superman.

Nada disso deveria ter sido desprezado. A Mulher Maravilha merecia que seu filme tocasse na ferida da igualdade de gêneros de uma maneira mais incisiva, mais direta.

Por tudo que representa, o mundo merecia ter visto a Mulher Maravilha segurar na garganta de um machista e dizer com todas as letras: “Olha, não gosto de ser tratada assim”. Infelizmente, não aconteceu. Não chega a tirar o brilho do filme, mas dá um gosto amargo no final. Diana, mesmo com todos os seus superpoderes, segue sendo mais uma vítima do patriarcado.

DE ZERO A DEZ: ★★★★★★★★✩✩

Mulher-Maravilha (Wonder Woman) — EUA, 2017
Direção: Patty Jenkins
Roteiro: Allan Heinberg (baseado em argumento de Zack Snyder, Allan Heinberg e Jason Fuchs)
Elenco: Gal Gadot, Chris Pine, Connie Nielsen, Robin Wright, Danny Huston, David Thewlis, Said Taghmaoui, Ewen Bremner, Eugene Brave Rock, Lucy Davis, Elena Anaya, Lilly Aspell, Lisa Loven Kongsli, Emily Carey
Duração: 141 min.

ATUALIZAÇÃO

Para não ser injusto com o filme, colo AQUI post da página Minas Nerd que fala sobre a influência positiva de “Mulher Maravilha” entre as crianças. A dica é da querida leitora Renata Silveira, que alerta pro fato de que o filme é sim útil para abrir uma saudável discussão.

Patrício Jr.

Patrício Jr.

Escritor, jornalista, publicitário. Autor dos romances “Lítio” e “Absoluta Urgência do Agora” e da coletânea de contos “A Cega Natureza do Amor”, publicados pela Editora Jovens Escribas.

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