O guitarrista Carlos Santana descreve a única música que ocupa todo o lado b do disco Bitches Brew, lançado em 1969 pelo trompetista americano Miles Davis, dizendo que é possível ouvir o trompete de Davis ecoando pelos prédios de Nova York às 3 da manhã, como se a cidade formasse um “imenso cânion de edifícios”. Essa cena poética descrita por Santana dá as dimensões não apenas do que é a música de Miles Davis, mas também o que é a ideia imensa que se esconde por trás das cidades.
Andar pelas ruas de um lugar é como ouvir Bitches Brew, seja em Nova York, São Paulo, Natal, Currais Novos ou Santa Cruz. Fotografar essas cidades é sempre a esperança de fazer ecoar o trompete de Davis através de imagens que o olho do fotógrafo vê e sua câmera tenta tornar perene. Claro que essa é sempre uma tentativa frustrada, afinal aquelas notas iniciais do sopro de Miles se sobrepondo ao som do prato de Lenny White não podem ser repetidas por ninguém, em nenhuma expressão artística.
Bitches Brew é uma utopia de 26 minutos, tocada em sua maior parte de improviso, que ecoa por todas as cidades do mundo, inclusive pelas que fotografo. E, como utopia, seu papel não é encontrar um lugar, mas provar que outros lugares são possíveis. Por isso, cada cena cotidiana, inesperada tem a chance de acontecer como as notas alongadas do trompete improvável que tira a cidade de seu sono.
Perdi a conta de quantas vezes saí para fotografar cidades ouvindo Bitches Brew e, mesmo sabendo que nunca repetirei Miles Davis numa fotografia, gosto de sincronizar os passos, os movimentos, os desenhos e temas de quem fotografo entre uma nota e outra, entre respiros e penso que as cenas mais comuns das cidades sempre ecoarão em meus olhos às 3 da manhã de uma madrugada qualquer, como esta em que escolho fotos e arranjo estas palavras.