Masculinidade, vazios, responsabilide afetiva: uma reflexão sobre “Paris, Texas”

Paris, Texas

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Wim Wenders não filmou apenas a história de um homem perdido e sua família. Paris, Texas é uma crítica social disfarçada de travessia íntima. É sobre os desertos externos e internos que criamos quando confundimos liberdade com abandono, amor com posse, cuidado com ausência.

Travis, o protagonista, é um homem que não deu conta: da esposa, do filho, de si mesmo. Nessa incapacidade está refletida uma masculinidade inteira, treinada para fugir diante da responsabilidade, mas legitimada a voltar como se o tempo tivesse a obrigação de perdoar. O irmão que o acolhe representa o que sobra da família, representa os que seguram, os que ficam, os que tapam os buracos. A cunhada, que cria o filho como se fosse dela, encarna a figura tantas vezes empurrada às mulheres: a do cuidado não escolhido, mas inevitável. E há Hunter, a criança. Seu olhar desconfiado traduz a infância roubada pela ausência paterna, compensada pelo esforço dos outros.

A amizade que nasce entre pai e filho é bela, mas também triste: expõe o que poderia ter existido antes e não existiu. A cena do reencontro com a mãe reforça isso. O abraço entre ela e o menino é puro instinto: a afetividade feminina não precisou de ensaio, estava ali guardada. Enquanto isso, Travis só pode observar de fora, consciente de que seu lugar foi esvaziado pelo próprio abandono.

Quando as luzes do cinema acenderam e eu, aos prantos, olhei para o meu namorado (que já tinha assistido à versão original), ele me disse algo que ficou reverberando: “Tudo falava sobre aridez, do espaço geográfico às relações”. Entendi então que a aridez não é apenas metáfora estética, mas denúncia.

O deserto de Wenders é também retrato da América dos anos 80: precariedade emocional em meio ao individualismo, a vida em motéis baratos, estradas intermináveis, telefones públicos que conectam sem aproximar. É o vazio de uma sociedade que normaliza a fuga, romantiza a ausência e chama de amor o retorno tardio.

Na cena final, o vidro que separa Travis e Jane simboliza a impossibilidade de conciliação entre o desejo masculino de recomeçar quando lhe convém e a realidade feminina de lidar com os cacos. Ele fala, ela escuta; ele assume, ela sente. Mas não há reparo possível. O amor deles existe, mas não cabe mais, porque amor não sobrevive sem responsabilidade afetiva.

Paris, Texas é menos sobre reconciliação e mais sobre o preço das escolhas. Mostra como a sociedade empurra o peso do cuidado para quem fica, sejam eles irmãos, esposas, mães, mulheres. Revela que os desertos não são apenas geográficos, mas emocionais e estruturais. Essa talvez seja a crítica mais dura de Wenders: os desertos não nos são dados pela natureza, nós os criamos, todos os dias, quando não sabemos regar o que importa. A restauração do filme reforça esse aspecto. Não se trata apenas de melhor imagem ou som, mas de memória viva.

Quatro décadas depois, a obra segue urgente, capaz de nos fazer sentir o grão da areia, o calor do deserto e a aridez das relações humanas com uma clareza que talvez tenhamos esquecido. Ao final, Travis e Jane seguem separados pelo vidro: ele fala, ela sente. Não há catarse, não há reconciliação. O amor deles persiste, mas floresce apenas como despedida. Às vezes, responsabilidade afetiva é justamente isso: reconhecer que o maior cuidado pode ser a ausência, não a insistência.

Saí do cinema em silêncio, como quem também caminhou quilômetros por dentro de si. Compreendi que a aridez tem sua poesia: é o território dos limites, onde não cabe mais ilusão. É no seco que se entende o valor da água, é na ausência que o gesto de cuidado grita. Paris, Texas, que merecidamente foi restaurado, não é apenas uma obra-prima do passado, mas uma chamada ao presente. Ele ensina que memória é frágil, tempo é implacável e que responsabilidade afetiva não é promessa, é permanência. E ao lembrar repetidamente da fala do meu namorado, penso que talvez amar seja isso: plantar sombra no deserto do outro, mesmo que nunca vejamos florescer, mas sabendo que fazê-lo já é um ato de reverência à vida.

Filme lindo, emocionante, impactante e que bom ter visto somente agora, porque só assim consegui entender com minúcias de detalhes essa obra prima.

Carla Nogueira

Carla Nogueira

Carla Nogueira, ou simplesmente Carlota, é produtora Cultural formada em Gestão de Pessoas e possui MBA em Gestão Humanística de Pessoas. Multicriativa por natureza, é fundadora do Estúdio Carlota, idealizadora do Festival Manifesta e outros muitos projetos, todos eles dedicados a impulsionar a arte, a cultura, criando conexões que transformam criatividade em potência. Notívaga assumida, amante de cervejas e mestre no sarcasmo, escreve crônicas afiadas sobre as ironias e peculiaridades do cotidiano.

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