A poética urbana de Marcelo D’Salete, um dos maiores quadrinistas da atualidade

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Hoje, Marcelo D’Salete se encontra na posição invejável de ser um dos maiores autores de quadrinhos do Brasil, ao lado de nomes como Gabriel Bá, Fábio Moon, Marcello Quintanilha, Gustavo Duarte e outros. Seus quadrinhos já foram premiados com HQs Mix, Jabutis e Eisners. Seus originais já foram expostos no Brasil e no exterior. Seu currículo inclui obras como Cumbe (2014), Angola Janga (2017) e o recente Mukanda Tiodora (2022). O que, no Brasil, é claro, significa muito pouco. Marcelo D’Salete ainda é um autor de quadrinhos, cujo o trabalho não são tirinhas que podem ser publicadas em livros didáticos, amaldiçoando-o na posição de ser para sempre desconhecido do grande público, seja ele leitor ou não de quadrinhos.

Por isso, falemos de Encruzilhada. Segundo quadrinho publicado pelo autor, que ganhou uma nova edição em 2016 pela editora Veneta, Encruzilhada é um conjunto de contos sobre vidas marginalizadas e pequenas em meio a prédios claustrofóbicos de uma São Paulo esmagadora e pobre.

Marcelo D’Salete é um escritor sobre a vida da pessoa negra no Brasil, sobre a vida da pessoa pobre, sobre o ser marginalizado, e não marginal, sobre racismo. Isso você vai ler em todas as linhas de reportagens já escritas sobre ele. Mas o que talvez não te digam é que D’Salete é um poeta visual, um alquimista, um bruxo da arte moderna que mistura em seu caldeirão os ingredientes de uma boa e poderosa história. Uma história inteligente onde os temas abordados não surgem apenas no âmbito do discurso que diz: “policial que bate em pobre é ruim” ou “racismo é um assunto sério, pessoas sofrem com isso”.

O autor utiliza sua arte, como um todo, para construir uma reflexão junto com seu leitor sobre as histórias contadas, sobre como essas histórias refletem o mundo real e como pensam esse mundo. O autor cria uma colcha de retalhos repleta de experimentações, variações de ritmo e sequências disfuncionais em prol da elaboração de um todo significativo, caótico e opressor. Suas páginas são diagramadas com o propósito de extrair tensão em uma leitura imersiva que busca expor os contrastes existentes em histórias que acontecem todos os dias nas grandes cidades.

D’Salete não se põe como narrador e nem põe seus personagens, o narrador de Encruzilhada é São Paulo. Por mais que esse narrador empreste sua voz para um de seus personagens, não é o personagem que determina o olhar da história. E o olhar nesse quadrinho é importantíssimo, pois vemos o olhar da cidade. Nesse olhar, o ser humano não importa. E isso vale para todos: o policial é a sua farda, o usuário de drogas é o seu cachimbo; todos possuem um papel a cumprir e devem seguir o que se espera desse papel. Quando esse papel não é cumprido, como ocorre no final do primeiro conto, a cidade busca investigar o porquê dessa quebra. Apenas quando essa quebra acontece, a cidade é forçada a ver o ser humano em uma tentativa de compreendê-lo, causando uma inevitável ponte de empatia entre o personagem e o leitor.

Em Encruzilhada, vemos a visão social sobre os personagens, a realidade nos é apresentada da maneira pela qual nós a absorvemos na televisão, nos jornais, nas redes sociais. Nessas histórias, o supermercado Carrefour ganha o quadro maior, o seu logo surge no céu em um esplendor visível e gritante, enquanto as pessoas, seus problemas, seus dramas, suas angústias, seus sentimentos, ganham quadros menores, pequenos demais para retratar tantas informações. Quadros claustrofóbicos, opressivos, às vezes angustiantes, às vezes misteriosos. Quadros sobre criminosos? Prostitutas? Quadros sobre histórias postas de lado, em meios aos carros, aos prédios altos, dentro dos supermercados, dentro dos shoppings. Histórias sem importância?

Nessa investigação, a hq cresce, transcendendo seu posto de “obra sobre tal tema” e ascendendo ao lugar de “excelente quadrinho”. Sendo Encruzilhada, então, uma ótima maneira de conhecer o trabalho de seu autor, conhecer o quadrinho brasileiro e maravilhar-se com ambos, através de uma leitura que, por mais que seja um quadrinho, não é fácil e não é didática, mas é o ponto de partida de uma reflexão maior.

Gabriel Cavalcanti

Gabriel Cavalcanti

Graduando de Letras-Francês, na UFRN, autor do zine Sonhos Marcianos para Terrestre Afogados, membro da Sociedade Secreta das Sarjetas.

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